segunda-feira, 30 de abril de 2018

Todo mundo mente, Pondé FSP

Quando questionadas por suas preferências, as pessoas querem parecer inteligentes

SÃO PAULO
“Todo mundo mente” é a tradução de uma frase famosa do personagem Dr. House da série homônima. Ele dizia: “Everybody lies”. E é também um livro singular com o mesmo nome, escrito pelo ex-engenheiro do Google Seth Stephens-Davidowitz (HarperCollins, 2017).
Trata-se de um daqueles trabalhos escritos a partir de pesquisa em cima do Big Data, essa gigantesca plataforma de dados, cada vez mais processada por algoritmos sofisticadíssimos (“bots”, para os íntimos). Davidowitz é um “data scientist” (cientista de dados).
A chamada “física social”, disciplina criada pelo também “data scientist” do MIT Alex Pentland, autor de um clássico de 2014 na área, “Social Physics”, se constitui numa ciência social a partir dos rastros deixados por nós na rede. O “físico”, aqui, seria esse rastro que pode ser organizado como qualquer outro dado concreto de uma “hard science” (“ciência dura”, e não vaga, como as “humanas”).
Enquanto Pentland é um claro “integrado” à ideia de que isso tudo fará o mundo melhor, Davidowitz é mais dialético na sua abordagem.
Ilustração coluna Luiz Felipe Pondé
Ricardo Cammarota
A ideia central do livro é que “everybody lies”. E a razão desta mentira generalizada é que queremos parecer melhor do que somos no Face (nada que santo Agostinho, vivendo entre os séculos 4 e 5, não soubesse, sem o suporte, claro, da “data science” pra provar). A outra razão da mentira é o marketing do bem, que resolveu construir uma grande mentira a serviço da ideia de que o bem é algo que se cria numa start-up cheia de millennials livres do mal.
A comparação entre, por exemplo, o que se posta no Face (fruto de nossa intenção de parecer ótimos, felizes, inteligentes e engajados) e o material que, de fato, “googamos”, em busca de respostas ou, pelo menos, de mais dados sobre o tema que nos interessa, revela que todos mentimos. Os dois conteúdos não batem.
Como alguém, por exemplo, que diz que o marido é ótimo e a ama apaixonadamente no Face, pode, no Google, se perguntar tanto “como saber se meu marido é gay?” ou “o que fazer se meu marido não quer fazer sexo comigo?”. Sim, essas são duas das maiores questões que atormentam as mulheres. O homens, por sua vez, postam que estão “evoluídos”, principalmente os mais jovens, mas continuam atormentados por questões como “ela está tendo um caso?” ou “como aumentar meu pênis?”.
Fala-se muito de empoderamento feminino, e as mulheres mais jovens ficam cada vez mais fálicas (e sozinhas, diante de homens jovens amedrontados). Mas, se olharmos para as buscas delas no Google, o que vemos é o desejo de ver material erótico em que mulheres são violentadas, humilhadas, tratadas como vadias e similares. Enquanto a histeria do assédio toma conta de Hollywood e do mundo da mídia, muitas mulheres ficam vendo vídeos em que mulheres são assediadas e acabam gozando.
A Netflix aprendeu uma dura lição. Quando buscou fazer os menus de seus consumidores a partir da lista que estes informavam, jogou dinheiro no lixo. Quando questionadas por suas preferências, as pessoas elencavam filmes inteligentes, europeus, iranianos, alternativos, documentários. Mas, na verdade, ninguém usava o menu.
Enquanto projetavam um perfil de amantes de filmes inteligentes, na verdade, viam filmes de terror, crimes, romances, comédias idiotas e super-heróis bobos. A Netflix resolveu então perguntar ao algoritmo, nosso oráculo. O algoritmo sabe de mim mais do que eu sei de mim mesmo. Outra vez, santo Agostinho. Só que, para este, era Deus quem sabia mais de mim do que eu sabia de mim mesmo.
E aí chegou ao que precisava. Nós mentimos, o algoritmo não. Rastreando os tipos de filmes realmente vistos, a Netflix chegou à solução: não pergunte para as pessoas do que elas gostam, porque elas mentem (provavelmente, para si mesmas), olhe para o que elas fazem de fato. De novo, nada que a filosofia moral já não soubesse.
Quer mais? Apesar de as pessoas afirmarem que são contra julgar os outros (está na moda amar todo mundo), na verdade, o que os rastros dizem é que muita gente adora julgar os amigos, os colegas de trabalho, e falar mal deles. 
Apesar de dizerem que querem ser informadas e, por isso, veem noticias de manhã, na verdade, as pessoas adoram acompanhar fofocas sobre celebridades transando fora do casamento. 
Apesar de se condenar, veementemente, a violência, as pessoas adoram assistir a filmes de caras ricos fazendo sexo violento com alunas da faculdade. O mundo nunca foi uma farsa maior do que é hoje.
Luiz Felipe Pondé
Pernambucano, é escritor, filósofo e ensaísta. Doutor em filosofia pela USP, é professor da PUC e da Faap.

'Alzheimerização' de demências preocupa médicos e atrapalha busca por tratamento, FSP


Embora o alzheimer a causa maior causa da síndrome demencial, mais de cem doenças geram condição



Fernando Tadeu Moraes
SÃO PAULO
Um homem ou uma mulher de mais ou menos 75 anos certo dia começa a repetir a mesma história como se a contasse pela primeira vez. Em outro, chega em casa sem o carro após tê-lo esquecido na frente da padaria do bairro. Logo está se atrapalhando em tarefas básicas do dia a dia, como cuidar do cachorro ou fazer o almoço. 
Preocupada, a família vai atrás de um médico e recebe o diagnóstico devastador: doença de Alzheimer (DA). O tratamento é iniciado, remédios são administrados, mas, após avaliação com outro especialista, descobre-se que a enfermidade por trás do quadro de demência é outra.
Histórias como essa não são incomuns nos consultórios e hospitais Brasil afora e resultam de um fenômeno que ainda persiste na prática médica, a despeito dos avanços na maneira de se diagnosticar a doença de Alzheimer.
"Há algum tempo a doença de Alzheimer passou a ser má utilizada na prática como sinônimo de demência da fase mais avançada da vida, o que nunca foi verdade para aqueles que estudam o assunto", afirma Ricardo Nitrini, professor titular de neurologia da Faculdade de Medicina da USP.
Um estudo americano ainda em curso, cujos primeiros resultados foram anunciados no ano passado, fornece alguns números para a discussão. 

Exames de imagem podem ajudar a encontrar possíveis causas de demências, como o mal de Alzheimer
Exames de imagem podem ajudar a encontrar possíveis causas de demências, como o mal de Alzheimer - Evan Vucci/Associated Press
Quase 4.000 pessoas com déficit cognitivo leve e demência foram testadas. Os resultados mostraram que 30% dos pacientes com demência não possuíam, no cérebro, as placas formadas pela proteína beta-amilóide, um das lesões características do alzheimer --portanto, não tinham a doença.
Tais constatações geram algumas perguntas. Como surgiu essa confusão entre alzheimer e demência? Qual é maneira correta de se realizar o diagnóstico de alzheimer? Quais são as consequências de um tratamento equivocado? Como a busca por uma cura foi afetada por esses erros?
Para tentar respondê-las, é necessário compreender como o conhecimento da doença mudou nas últimas décadas.
Descrita em 1906 pelo psiquiatra alemão Alois Alzheimer a partir do caso de uma mulher de 51 anos, a doença de Alzheimer era considerada até os anos 1970 uma moléstia rara que acometia pessoas relativamente jovens.
A partir da década de 1970, porém, começaram a surgir estudos mostrando que a DA era, na verdade, a mesma doença que frequentemente causava demência em idosos.
"A forma pré-senil é muito influenciada pela genética e começa antes dos 65. Já a forma senil acontece mais tarde, mas ainda não entendemos bem a carga genética envolvida. Na prática, porém, quando se analisa o cérebro desses doentes não é possível distinguir uma forma da outra", diz Claudia Suemoto, professora de geriatria da USP.
Ambas provocam as lesões causadas pelo acúmulo anormal das proteínas que caracteriza a doença de Alzheimer --a tau e a beta-amilóide--, responsável pela degeneração de neurônios e por dificultar a comunicação entre eles.
"Essa descoberta, aliada a estudos em populações e em bancos de cérebros, mostrou que a DA é a causa de demência mais frequente em idosos, reforçando a associação entre demência e alzheimer. Assim, saímos de um período em que a DA era considerada rara, para uma situação em que casos de demências não relacionadas a ela são erroneamente diagnosticadas como tal", diz o neurologista Paulo Caramelli, professor titular da UFMG.
Caramelli qualifica esse fenômeno de "alzheimerização". "Embora a doença de Alzheimer seja a principal causa de demência em idosos, uma coisa não é sinônimo da outra. De um lado, existem cerca de 100 enfermidades que causam demência; de outro, hoje se sabe que a DA também provoca alterações anteriores e mais leves."
Estudos conduzidos na última década mostraram que a doença de Alzheimer principia cerca de 15 anos antes da fase de demência, sendo esta antecedida de uma etapa assintomática e uma de comprometimento cognitivo leve.
A chance de receber o diagnóstico de alzheimer sem ter a doença aumenta ainda mais em locais onde a estrutura médico-hospitalar é precária, situação ainda comum no país.
Paulo Caramelli conta que recentemente consultou cerca de 20 colegas de diversos estados do país acerca dos desafios do diagnóstico de alzheimer em suas regiões.
"Todos reconheceram que falta acesso a recursos diagnósticos, como exames de neuroimagem, mas também apontaram a dificuldade de especialistas que fazem o atendimento primário de reconhecer precocemente os sintomas e de fazer o diagnóstico correto."
Hoje, o procedimento deve começar com entrevistas com o paciente e sua família e aplicação de testes de raciocínio, memória, atenção, entre outros. Constatado que se trata um caso de demência, parte-se para a investigação das causas. 
Exames de sangue descartam outras doenças que podem atrapalhar a cognição, como problemas de tireoide e falta de vitamina B12. Por fim, são feitos testes de neuroimagem, como ressonância nuclear magnética e tomografia por emissão de pósitrons. 
"Cerca de 5% dos pacientes apresentam algum tipo de demência potencialmente tratável e que pode ser identificado por meio de exames de imagem", diz Claudia da Costa Leite, especialista em neuroradiologia e professora da USP. 
De acordo com Caramelli, no entanto, em poucos lugares no país vai-se além de entrevistar o enfermo e a família.
Mas mesmo que esse receituário seja seguido à risca, nunca há 100% de certeza no diagnóstico, algo só obtido com a análise do cérebro após a morte. "O termo demência causada pela doença de Alzheimer deve sempre vir acompanhado dos adjetivos provável ou possível", adverte Nitrini.
E com as falhas de diagnóstico vêm também os tratamentos errados.
"Os medicamentos de alzheimer podem eventualmente funcionar para certas demências, sobretudo para aquelas com evolução similar. Mas há demências para as quais eles não funcionam, atrasando o tratamento certo, trazendo custos para o sistema público e expondo o paciente a efeitos colaterais" diz Caramelli.
Os danos só não são maiores porque ainda não há cura ou formas de reverter a DA --e até essa ausência pode estar relacionada à confusão entre demência e alzheimer.
Segundo Nitrini, uma hipótese para explicar as falhas nos testes de novas drogas é a inclusão de casos de outras demências nos experimentos. "Atualmente busca-se ser preciso no diagnóstico para que apenas se inclua casos comprovados de alzheimer nos ensaios clínicos, mas ainda não é possível excluir completamente outras doenças."

POR QUE OCORREM FALHAS NO DIAGNÓSTICO DO MAL DE ALZHEIMER

Há um erro intrínseco ao diagnóstico, em cerca de 10% dos casos, por isso, a confirmação só ocorre por meio de biópsia ou autopsia, que não são feitas em pessoas vivas

MAIORES PROBLEMAS

  • Há casos de médicos que não aplicam o protocolo correto de diagnóstico
  • Em muitos locais do país, falta acesso às técnicas de neuroimagem
  • Há desconhecimento de clínicos gerais e geriatras, que muitas vezes fazem o atendimento primário dos doentes

COMO É FEITO O DIAGNÓSTICO

Quando um idoso começa  a apresentar  sintomas  como perda  de memória  e confusão mental, a família deve procurar preferencialmente um neurologista 
A primeira coisa a ser feita é entrevistar o paciente e sua família e aplicar testes de raciocínio, de memória, de atenção, entre outros
Um exemplo é apresentar uma lista de figuras como a abaixo e pedir para o paciente memorizá-la