segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Delcídio para nós


As dúvidas sobre a propriedade da prisão de Delcídio do Amaral, decretada por cinco ministros do Supremo Tribunal Federal, vão perdurar por muito tempo. Assim como a convicção, bastante difundida, de que a decisão se impôs menos por fundamento jurídico e equilíbrio do que por indignação e ressentimento com a crença exposta pelo senador, citando nomes, na flexibilidade decisória de alguns ministros daquele tribunal, se bem conversados por políticos.
Às dúvidas suscitadas desde os primeiros momentos, estando o ato do parlamentar fora dos casos de prisão permitida pela Constituição, continuam tendo acréscimos. O mais recente: Delcídio planejou a obstrução judicial que fundamentou a prisão, mas não a consumou. E entre a pretensão ou tentativa do crime e o crime consumado, a Justiça reconhece a diferença, com diferente tratamento.
A sonhadora reunião de Delcídio até apressou a delação premiada de Nestor Cerveró, buscada sem êxito pela Lava Jato há mais de ano. Ali ficou evidente que seu advogado Edgar Ribeiro estava contra a delação premiada. Isso decidiu o ex-diretor da Petrobras, temeroso, a encerrar aceitá-la, enfim.
Em contraposição às dúvidas sem solução, Delcídio suscitou também temas e expectativas que tocam a preocupação ou a curiosidade de grande parte da população. Sabe-se, por exemplo, que Fernando Soares, o Baiano, ao fim de um ano depositado em uma prisão da Lava Jato, cedeu à delação premiada. O mais esperado, desde de sua prisão, era o que diria sobre Eduardo Cunha e negócios com ele, havendo já informações sobre a divisão, entre os dois, de milhões de dólares provenientes de negócios impostos à Petrobras.
Informado dos depoimentos de Baiano, eis um dos comentários que o senador faz a respeito: ele “segurou para o Eduardo”. Há menções feitas por Baiano que não foram levadas adiante pela escassa curiosidade dos interrogadores. Caso, por exemplo, de um outro intermediário de negociatas citado por Baiano só como Jorge, sem que fossem cobradas mais informações sobre o personagem e seus feitos. Mas saber tudo o que há de verdade ou de fantasia em torno do presidente da Câmara é, neste momento, uma necessidade institucional e um direito de todo cidadão.
Se Fernando Baiano “segurou para Eduardo Cunha”, a delação e os respectivos prêmios -a liberdade e a preservação de bens- não coincidem com o que interessa às instituições democráticas e à opinião pública. E não se entende que seja assim.
Entre outras delações castigadas de Delcídio, um caso esquisito. Investigadores suíços confirmaram, lá por seu lado, que Nestor Cerveró tinha dinheiro na Suíça. Procedente de suborno feito pela francesa Alstom, na compra de turbinas quando ele trabalhava com Delcídio, então diretor Gás e Energia da Petrobras em 1999-2001, governo Fernando Henrique. A delação do multipremiado Paulo Roberto Costa incluiu o relato desse suborno. Mas a Lava Jato não se dedicou a investigá-lo e o procurador-geral da República o arquivou, há oito meses. Os promotores suíços foram em frente.
Na reunião da fuga, Delcídio soube com surpresa, por Bernardo, que Cerveró entregara o dinheiro do suborno ao governo suíço, em troca de não ser processado lá. É claro que a Lava Jato e o procurador-geral da República estiveram informados da transação. E contribuíram pela passividade. Mas o dinheiro era brasileiro. Era da Petrobras. Foi dela que saiu sob a forma de sobrepreço ou de gasto forçado. Não podia ser doado, fazer parte de acordo algum. Tinha que ser repatriado e devolvido ao cofre legítimo.
A Procuradoria Geral da República deve o esclarecimento à opinião pública, se fez repatriar o dinheiro do suborno ou por que não o fez. E, em qualquer caso, por que não investigou para valer esse caso. Foi ato criminoso e os envolvidos estão impunes. Com a suspeita de que o próprio Delcídio seja um deles, como já dito à Lava Jato sem consequência até hoje.
Mas não tenhamos esperanças. Estamos no Brasil e, pior, porque a ministra Cármen Lúcia, no seu discurso de magistrada ferida, terminou com este brado cívico: “Criminosos não passarão!” [toc-toc-toc, esconjuro] Foi o brado eterno de La Passionaria em Madri, que não tardou a ser pisoteada pelos fascistas de Franco. De lá para cá, em matéria de ziquizira, só se lhe compara aquele [ai, valei-me, Senhor] “o povo unido jamais será vencido”, campeão universal de derrotas.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

1967 - SERRA DAS ARARAS A MAIOR TRAGÉDIA


Por: Aurélio Paiva - jornal Diário do Vale - 14/01/2011
Imagem da Serra das Araras - de 1967 - ficou pelada. 

A maior tragédia do Brasil foi na Serra das Araras
Uma cruz de 10 metros na subida da Serra das Araras (Piraí-RJ), no local conhecido por Ponte Coberta, marca o início de um enorme cemitério construído pela natureza. Lá estão cerca de 1.400 mortos (fora os mais de 300 corpos resgatados) vítimas de soterramento pelo temporal que atingiu a serra em janeiro de 1967. Foi a maior tragédia da história do país, superando o número de mortos da atual tragédia na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, hoje acima de 500.

No episódio da Serra das Araras, suas encostas praticamente se dissolveram em um diâmetro de 30 quilômetros. Rios de lama desceram a serra levando abaixo ônibus, caminhões e carros. A maioria dos veículos jamais foi encontrada. Uma ponte foi carregada pela avalanche. A Via Dutra ficou interditada por mais de três meses, nos dois sentidos.
Leia aqui "População recorda a tragédia de 1967"
A Revista Brasileira de Geografia Física publicou, em julho do ano passado, a lista das maiores catástrofes por deslizamento de terras ocorridos no país. O episódio da Serra das Araras, com seus 1700 mortos estimados, supera de longe qualquer outro acidente do gênero no país.

Para se ter uma idéia do que ocorreu na Serra das Araras basta comparar os índices pluviométricos. A atual tragédia de Teresópolis ocorreu após um volume de chuvas de 140mm em 24 horas. Na Serra das Araras, em 1967, o volume de chuvas chegou a 275 mm em apenas três horas. Quase o dobro de água em um oitavo do tempo.

Mas o episódio da Serra das Araras parece ter sido apagado da memória do país e, especialmente, da imprensa. O noticiário dos veículos de comunicação enfatiza que a tragédia da Região Serrana do Rio superou o desastre de Caraguatatuba em março de 1967 (ver abaixo). O caso da Serra das Araras, ocorrido em janeiro daquele mesmo ano, sequer é citado.

Até a ONU embarcou na história e colocou a tragédia atual entre os dez maiores deslizamentos de terras do mundo nos últimos 111 anos.
Caraguatatuba - marcas do delizamento também em 1967

O ano de 1967 foi realmente atípico. Em março, dois meses após a tragédia da Serra das Araras, outro desastre atingiu Caraguatatuba, no litoral paulista. Chovia quase todos os dias desde o início do ano (541mm só em janeiro, o dobro do normal). Do dia 17 para 18 de março, um temporal produziu quase 200 mm de chuvas em um solo já encharcado. No início da tarde de 18 de março, sábado, a tragédia aconteceu sob intenso temporal que chegou a acumular 580mm de chuvas em dois dias (Teresópolis teve 366mm em 12 dias).

Segundos os relatos da época, houve uma avalanche de lama, pedras, milhares de árvores inteiras e troncos que desceu das encostas da Serra do Mar, destruindo casas, ruas, estradas e até uma ponte. Cerca de 400 casas sumiram debaixo da lama. Mais de 3 mil pessoas ficaram desabrigadas (20% da população da época). O número de mortos - cerca de 400 - foi feito por estimativa, pois a maioria dos corpos foi soterrada ou arrastada para o mar.

Detalhe: Caraguatatuba, em 1967, era um balneário turístico de 15 mil habitantes. Dá para imaginar quais seriam as consequências se aquela tragédia ocorresse hoje, com os atuais 100 mil habitantes.

‘Vimos mortos nas árvores, braços na lama'
Bárbara Osório-MacLaren nasceu na Alemanha em janeiro de 1939. Tendo sobrevivido à II Guerra Mundial, veio para o Brasil com a família em 1950, quando tinha 11 anos, atendendo a um chamado do avô materno, que já vivia no país.
Foi morar em São Paulo, na Tijuca Paulista, fez Admissão no Externato Pedro Dolle e, quando jovem, estudou no Ginásio Salete. Frequentava o Clube Floresta: "Nos encontrávamos (com os amigos) para nadar ou praticar outro esporte", relembra.

Em 1961, mudou-se para a Inglaterra. Seis anos depois, aos 28 anos de idade, voltou ao Brasil para rever os amigos.
Já no Rio de Janeiro, em 22 de janeiro de 1967, às 23 horas, tomou um ônibus da Viação Cometa com destino a São Paulo. Um temporal desabou na Via Dutra, que acabara de ser duplicada. Nunca, naquela região, se havia visto ou iria se ver uma chuva tão forte quanto aquela que presenciava a jovem alemã e que ela relata a seguir:

- Dentro de 40 minutos, na Via Dutra, houve um temporal. O nosso ônibus já estava na subida, mas a estrada se abriu a nossa frente. Lá ficamos até a manhã do dia seguinte. Pela rádio ouvimos os gritos de pessoas em outros carros, estavam sufocando na lama.

Bárbara dá detalhes: "Pela manhã, descemos o morro a pé, vimos mortos nas arvores, braços na lama, as reportagens nos jornais falavam de mais de 400 mortos. Eu desmaiei no transporte de caminhão desta cena ao Centro do Rio. Quando acordei do coma ou desmaio, estava em Lisboa, Portugal. Em outras palavras, em vez de me levarem a um hospital no Rio, me despacharam para a Europa".

A experiência da jovem alemã, hoje com 72 anos, foi contada há dois anos em um depoimento ao site "São Paulo Minha Cidade" e dá a dimensão do que ocorreu na Serra das Araras em 1967.

Mas seu depoimento, 42 anos após a tragédia, é uma raridade. Há poucas histórias registradas sobre os acontecimentos da época, por duas razões: carência de boa cobertura jornalística, em virtude dos parcos recursos tecnológicos da imprensa no período, e o fato de que o episódio foi tão trágico que poucos sobreviveram para testemunhá-lo.

Outra das poucas histórias que sobreviveram também envolve um cidadão estrangeiro. É a história do motorista do ônibus prefixo 529 da Viação Cometa, que salvou a vida de quase todos os passageiros. O motorista, quando vislumbrou a tragédia que poderia se suceder, pediu que todos deixassem o ônibus, mas um estrangeiro recusou-se à deixar o veículo. Poucos minutos depois, uma rocha rolou e caiu sobre o ônibus, matando o estrangeiro.
Salvos: Ônibus da Viação Cometa na Serra das Araras, em 1967. Motorista só não salvou um passageiro

Advogado lembra trabalho de presos
O advogado Affonso José Soares, de Volta Redonda, que morava em Piraí na época da tragédia, lembrou que, na madrugada da tragédia na Serra das Araras, trabalhava em um habeas corpus para a libertação de sete presos. Eles haviam sido detidos, em flagrante, cerca de dois meses antes, praticando um jogo ilegal de aposta conhecido como "Jogo da Biquinha". Durante a madrugada, percebeu o barulho do estrondo, mas continuou o trabalho com o auxílio de um lampião, já que a cidade ficou às escuras por causa dos deslizamentos na serra.

- Estava trabalhando no meu escritório e escutei o estrondo por volta de uma ou duas horas da manhã. Estava trabalhando intensamente em um habeas corpus para sete presos que estavam na cadeia de Piraí e, quando as luzes se apagaram, tive que usar um lampião durante a madrugada toda - lembrou.

Na manhã seguinte, segundo ele, o município foi "invadido" por passageiros do Rio de Janeiro e de São Paulo, que ficaram impossibilitados de passar pela serra devido aos desmoronamentos e crateras.

- Foi uma ocorrência de acidente muito grave. Os ônibus de São Paulo e carros do Rio entravam em Piraí e não tinham como seguir viagem. O comércio foi praticamente invadido por passageiros. A tromba d'água tinha destruído praticamente todo o acesso. Na Serra das Araras, havia crateras enormes. Demoraram quatro ou cinco meses para restabelecer a situação - lembrou.

Antes do meio dia, no dia da tragédia, o advogado lembra que foi procurado pelo delegado que pediu sua ajuda para convencer os presidiários a colaborarem no resgate das vítimas.

- O contingente da delegacia era de cinco pessoas, entre policiais militares e civis e havia necessidade imediata de pessoas para realizar o trabalho de prestar socorro às vítimas presas nas crateras. O delegado acrescentou que os presos depositavam confiança em mim e me respeitavam e que eu poderia convencê-los a ajudar - continuou.

Ao dirigir-se àquele que seria o "líder" dos presos, Affonso recordou que frisou a oportunidade de os presos mostrarem humanidade e solidariedade.

- Falei que eles estavam tendo uma oportunidade de prestar um serviço público e demonstrar espírito solidário. Mesmo assim, lembrei que se esboçassem qualquer reação de rebeldia poderiam ter sérios problemas, porque eu tinha material suficiente para incriminá-los. Eles aceitaram e pediram para dizer que estavam nas mãos do delegado - acrescentou o advogado.

Os sete presos fizeram o trabalham mais pesado do salvamento: foram amarrados por cordas e descidos até o local em que estavam às vítimas. Além de auxiliar no salvamento e nos primeiros socorros aos sobreviventes, apanhavam corpos e os traziam abraçados.

"Eles eram fortes e fizeram um trabalho que ninguém queria fazer. Trabalharam por 48 horas e voltaram à delegacia para ajudar na parte burocrática", frisou Affonso.

Dias depois, por intermédio de um escrivão piraiense que vinha de São Paulo, Affonso descobriu que o trabalho executado pelos presos havia ido parar na primeira página do Jornal da Tarde com o título "Os sete homens bons". Sem pestanejar, anexou a reportagem ao processo que estava organizando.

- Apanhei a primeira página do Jornal da Tarde e juntei ao habeas corpus e tenho certeza que isso contribuiu para obter a liberação deles. Eles demonstraram seu lado humano, o de quem não é só criminoso, bandido - explicou.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Nos Estados Unidos, a arte de esfolar os pobres, por Maxime Robin Le Monde Diplomatique

A VOLTA DA USURA NUMA SOCIEDADE GANGRENADA PELO CRÉDITO

A dívida contraída pelos estudantes norte-americanos atingiu US$ 1,2 trilhão em 2014. Diante das dificuldades dos clientes em fazer os reembolsos, os bancos aumentam as multas e... os lucros. Ao mesmo tempo, eles se recusam a abrir agências em bairros empobrecidos.
por Maxime Robin


No balcão de um check casher, ao longo da Broadway, uma artéria do Brooklyn Central sombreada pelo metrô aéreo de Nova York, Carlos Rivera pede mais prazo. “No tengo los 10 pesos”, diz à funcionária atrás do vidro. No Brooklyn, essas lojas estão por toda parte: as páginas amarelas registram 236. São reconhecidas pelas fachadas coloridas e decrépitas, por seus letreiros em neon, pelo símbolo do dólar e pela palavra cash nas vitrines. Além de transferências de dinheiro vivo, descontam cheques cruzados de moradores que não têm conta bancária: o montante é convertido em espécie mediante comissão (cerca de 2% para US$ 100, mais taxas). As lojas oferecem também empréstimos a curtíssimo prazo com juros altíssimos.
Em escala nacional, esses milhares de muquifos formam uma indústria financeira poderosa, multiforme, designada pelo termo genérico predatory lenders ou “emprestadores vorazes”, nome devido a um modelo comercial agressivo: o devedor jamais se safa, pois frequentemente tem de pagar um empréstimo anterior com um novo.

Mais caixas que no McDonald’s
Apesar de seu sucesso fulgurante, esses prestamistas sem escrúpulos não são vistos com bons olhos no país. Os estados tentam de todos os modos regulamentar suas atividades. O produto financeiro mais devastador é proibido no estado de Nova York, mas legal na Califórnia: trata-se do payday loan, “empréstimo consignado”, isto é, de ultracurto prazo (quinze dias no máximo), que se liquida no dia do recebimento do salário com juros extorsivos. Um cliente pode, assim, obter um empréstimo de US$ 300, que reembolsará no valor de US$ 346.
Essa indústria, que há duas décadas não existia, teve um lucro de US$ 46 bilhões em 2014. Há hoje nos Estados Unidos mais check cashers do que McDonald’s e Starbucks juntos. O Center for Responsible Lending (Centro para o Empréstimo Responsável [CRL]), encarregado de documentar seus abusos, estimava, quando foi criado, em 2002, que o lucro total desses empréstimos chegava a US$ 9,1 bilhões em juros dos mais variados tipos e em execuções de penhora no caso de insolvência. Treze anos depois, ele se declara incapaz de calcular o impacto do negócio: “O total alcança centenas de bilhões de dólares”, informou o Centro, alarmado, em junho. “Isso afunda a vida de milhões de norte-americanos, mas também a do país como um todo.”1
Um pobre nos Estados Unidos já paga muito por qualquer coisa: prestações, alimentação, seguros.2 O conceito de poverty penalty (punição da pobreza) não é novo: David Caplovitz elaborou essa teoria em 1967 num texto de sociologia que se tornou clássico, The Poor Pay More.3 Sua análise continua pertinente. “Os pobres pagam mais por um litro de leite e por moradias de qualidade inferior”, denunciava em 2009 Earl Blumenauer, deputado democrata pelo Oregon. Os 37 milhões de norte-americanos que vivem abaixo do limite de pobreza e os outros 100 milhões que se debatem para integrar a classe média “pagam por aquilo que a burguesia considera um direito”.4
Apenas um exemplo: segundo um relatório da Consumer Federation for America, a associação dos consumidores local, as tabelas das principais companhias de seguros de automóveis dão mais importância ao nível de estudos e à situação profissional dos clientes do que à confiabilidade de sua condução. Em dois terços dos casos examinados, “os bons motoristas pobres pagam mais [cerca de 25%] do que os ricos que já provocaram acidentes”.5 “É preciso ser rico para levar vida de pobre”, ironizou o Washington Post,6catalogando as pequenas coisas da vida que castigam os trabalhadores sem dinheiro: tempo perdido nos transportes, filas de espera de todos os tipos para serviços de qualidade inferior etc. Não há tempo para o lazer nem direito ao erro.
Essas vidas de marionete assumem por vezes um contorno trágico, como a de Maria Fernandes, morta em setembro de 2014 dentro de seu carro num estacionamento de Nova Jersey. Funcionária havia quatro anos da rede de lanchonetes Dunkin’ Donuts, a mulher de 32 anos acumulava três turnos (tarde, noite e fim de semana) em três estabelecimentos diferentes para garantir a educação da filha e ganhar o salário mínimo então em vigor no estado de Nova Jersey: US$ 8,25 por hora. Alugava, por US$ 550, um apartamento mobiliado onde raramente dormia. Descansava dentro do carro mesmo, com o motor e o ar-condicionado ligados para refrescar o habitáculo, onde guardava uma lata de gasolina no banco traseiro. A lata virou acidentalmente durante um de seus cochilos, espalhando emanações tóxicas que a asfixiaram. Um porta-voz da Dunkin’ Donuts prestou-lhe homenagem num comunicado em que a chamava de “funcionária-modelo”.7
Voltemos ao check casherdo Brooklyn. A moça do guichê propôs um acordo a Carlos: ele poderia saldar sua dívida no dia seguinte. Tratava-o pelo primeiro nome: ele era, portanto, um cliente habitual. Aliviado, ele deu um telefonema, prometeu em inglês que não deixaria de pagar e saiu empurrando um carrinho de supermercado pelas ruas. Encheu-o de garrafas para reciclagem; os supermercados da área lhe pagavam 10 centavos por unidade. Vivia também de bicos “na construção”. Tivera conta num banco, mas já nem se lembrava de quando fora isso.
Os estabelecimentos financeiros instalam menos agências nos bairros de baixa renda. A área definida pelo código postal de Rivera, Stuyvesant Heights, tem apenas duas para 85 mil habitantes: um deserto bancário, igual a outros 650 país afora.8 Num paradoxo vertiginoso, Stuyvesant Heights se situa a apenas dez estações de metrô de Wall Street, o centro nevrálgico das finanças mundiais. “Não é vantajoso, para os bancos, abrir agências em bairros desfavorecidos”, explica Lisa Servon, professora de políticas urbanas na New School de Nova York. “Ali, os moradores são mais um fardo que uma fonte de lucros. Não depositam dinheiro e passam tempo demais no guichê. Os bancos querem o inverso: clientes que eles não veem nunca e que fazem depósitos.”
Os check cashers substituíram então os bancos nos bairros pobres, adotando um modelo econômico baseado na familiaridade, na diversificação de serviços (venda de cartões para celulares pré-pagos, loterias...) e em porcentagens cobradas a cada transação. “Os bancos querem um só cliente rico com US$ 1 milhão; nós queremos 1 milhão de clientes pobres com um dólar”, resume sem rodeios Joe Coleman, presidente da RiteCheck, importante rede com doze lojas no Bronx e no Harlem.9 Para os pobres, esses estabelecimentos são o último recurso antes dos empréstimos informais de rua, com seus riscos e desvantagens, fora do esquema legal, junto aos loan sharks (agiotas). Estes, ligados à pequena ou grande criminalidade, recorrem à violência para recuperar as somas emprestadas, sobrecarregadas de juros.
Servon nota igualmente que as comunidades de imigrantes de Nova York, em particular as hispânicas, mas também as senegalesas e árabes, importaram um método informal de microcrédito com taxa zero. O princípio é simples: várias pessoas investem uma pequena quantia numa conta comum. “Toda semana, segundo um sistema rotativo, um investidor diferente fica com o total”, explica a professora, que estuda esses círculos de crédito alternativos sem poder ainda avaliar seu número ou seu peso econômico.
Se os pobres não atraem o Chase ou o Bank of America, a recíproca também é verdadeira, segundo os trabalhos de Servon. “Os pobres preferem os check cashersporque pagariam ainda mais aos bancos em custos operacionais e ágio”, explica. Os bancos são mais gulosos e não concedem créditos pequenos a curto prazo, convenientes aos pobres. Cada estabelecimento dispõe de um arsenal médio de 49 sanções possíveis para as contas correntes: ultrapassar, mesmo que pouco, o limite autorizado pode acarretar penalidades sem fim. Conforme as estatísticas obtidas junto aos dez maiores bancos norte-americanos pela Federal Deposit Insurance Corporation – o organismo que garante os bancos –, metade dos saques sem fundos é provocada por despesas inferiores a US$ 36. Se esses saques forem considerados empréstimos a curto prazo, os juros chegarão a taxas que mal se podem imaginar: 5.000% ao ano.
Em 2011, os bancos dos Estados Unidos tiveram um lucro de US$ 38 bilhões apenas com ágio.10 “Eles estão ficando cada vez mais caros”, comenta Servon. “A instabilidade financeira dos norte-americanos aumentou e suas rendas se tornaram voláteis. As pessoas acumulam empregos, tentam arranjar tempo de qualquer jeito. Seus holerites não chegam com o mesmo valor ao fim de cada mês. Não têm poupança. Não têm dinheiro. Ficam no vermelho regularmente e as multas se acumulam.” Não é raro encontrar quem, com salário estável antes da crise, agora trabalhe em dois empregos de meio expediente, remunerados por hora. Os gastos com saúde, educação e creche explodiram, e “os empregadores já não oferecem vantagens sociais, enquanto as despesas aumentaram. Não há margem de erro... Aí é que está o problema”.
Um norte-americano comum é um endividado que paga suas contas pontualmente. Longe dos radares do sistema bancário, perto de 10 milhões de lares não dispõem de um instrumento essencial para gozar de status social nos Estados Unidos: o credit score (cota de crédito). Esse número de três algarismos começa geralmente em 300 (bastante medíocre) e se estabiliza em 850 (muito bom), com variantes que vão de 100 a 990, conforme o estabelecimento. É uma identificação pessoal tão importante quanto o número do seguro social. Desconhecida fora dos Estados Unidos, a cota de crédito condiciona a vida inteira de um cidadão norte-americano. Ela atesta se a pessoa paga suas contas em dia e é suficientemente digna de confiança para contrair empréstimos.
De início usado pelos bancos para empréstimos imobiliários, a cota de crédito pode ser consultada por lojas, seguradoras, donos de imóveis para alugar ou por um empregador em potencial. Uma boa cota é motivo de orgulho. Ela se imiscui até nos sites de encontros pela internet, permitindo julgar se a situação financeira do pretendente é saudável o bastante para que valha a pena conversar com ele.11 Uma fatura em atraso afeta-a imediatamente; se os problemas se acumulam, ela vai por água abaixo e os bancos se dão o direito de aumentar seus juros.
O pior é a exclusão bancária para quem não conseguiu perfazer uma “cota de solvência”: ele fica então com um “crédito invisível”. As portas se fecham; a vida se torna mais cara e complicada. Segundo um relatório do Consumer Financial Protection Bureau (Agência de Proteção Financeira do Consumidor), 30% da população dos bairros de baixa renda está excluída do crédito. Essa marca de infâmia afeta principalmente negros e hispânicos: 15%, contra 9% de brancos e asiáticos.12
Enquanto a Europa privilegia a poupança, a sociedade norte-americana estimula vigorosamente o crédito.13 O endividamento das famílias aumenta a olhos vistos. Não ter dívidas é sinal de má situação financeira. Hoje, cada família possui em média oito cartões de crédito e, segundo o Urban Institute, seus gastos se elevam a US$ 15 mil.
Um fato ocorrido no final dos anos 1980 abalou, sem fazer muito alarde, as estruturas econômicas antigas:14 a desregulamentação da taxa de usura, ou seja, a eliminação do teto máximo de juros bancários. Isso permitiu a um grande número de norte-americanos o acesso ao empréstimo; em contrapartida, os bancos obtiveram o direito de fixar as taxas de juros dentro de uma opacidade quase total. O número de falências individuais cresceu astronomicamente e o crédito ao consumidor atingiu níveis jamais vistos desde a Grande Depressão. “É a única indústria capaz de agir assim”,15 insurgiu-se em 2004 Elizabeth Warren, membro da ala esquerda do Partido Democrata que durante toda a sua carreira denunciou os abusos das empresas de crédito. Ela inspirou em 2010, depois da crise, a criação da Agência de Proteção Financeira do Consumidor, um órgão federal. Durante muito tempo, foi professora de direito financeiro em Harvard. Para ilustrar a opacidade da indústria bancária, Elizabeth se declara incapaz, ela própria, de calcular os juros dos empréstimos que contraiu.

Dívidas para garantir a sobrevivência
Os membros da classe média e os que trabalham para um dia pertencer a ela continuam sendo a principal fonte de lucros dos bancos, em virtude das dificuldades que encontram para pagar seus empréstimos e das multas que se acumulam. Para Warren, são eles que carregam nos ombros a indústria do crédito: “As pessoas em má situação, à beira da falência, que só podem pagar o mínimo da fatura, que pagam com atraso, que passam de vez em quando um cheque sem fundos, que vez por outra não saldam uma dívida...”.16
No Oregon, a enfermeira Claire Shrout, casada e mãe de dois filhos, pertence a essa categoria. Um contratempo desarranjou sua vida familiar: o câncer do marido, quando ela estava grávida do segundo filho. “Quando dei à luz, meu marido acabara de fazer sua quimioterapia”, conta. Claire nunca conseguiu poupar e fazer um fundo de reserva por causa dos empréstimos contraídos durante seus anos de estudo: “Milhares de dólares, todos os meses, desapareciam com o pagamento de faturas”. O marido precisou deixar o emprego por causa da doença e ela fez o mesmo durante quatro meses. “Sem renda, tivemos de pedir empréstimos para pagar as despesas médicas e sobreviver. A fim de pagar o primeiro, pedimos um segundo. A fim de pagar o segundo, pedimos um terceiro... Assim começaram os aborrecimentos. E tudo isso só para continuar vivos.” Doença do cônjuge, correia de transmissão do carro que se solta, empréstimo de juventude que não se paga nunca: a perspectiva de falência pessoal é cada vez menos abstrata, mesmo no seio da classe média.
Para a indústria do crédito, os Shrout são os clientes perfeitos. Ela obteve seu diploma na Universidade do Oregon em meados dos anos 1990. O preço do curso foi “bastante módico, sobretudo se comparado ao de hoje”. No primeiro dia, espalhadas pelo campus, havia grandes tendas onde, num clima de festa, se ofereciam aos alunos cartões de crédito. “Os vendedores eram jovens como nós, vestiam camisetas coloridas. Quem ficava com um cartão ganhava um almoço grátis ou um frisbee. Uma idiotice, mas quando se tem 17 anos é uma maravilha. Dizemos a nós mesmos que poderemos fazer o que quisermos com um simples toque no teclado: mais tarde, ganharemos o suficiente para pagar...” Em quatro anos de curso, ela solicitou cinco cartões diferentes. “Era uma maneira de resolver os problemas.” Quando se casou, aos 28 anos, ganhava US$ 25 mil por ano, mas devia US$ 13 mil; seu marido, US$ 8 mil.
Os pais dela fizeram seus estudos no Boston College, “mas nenhum pediu empréstimo para pagá-los, como é regra atualmente”. No caso do pai, um emprego num posto de gasolina mais a bolsa bastaram. Em 2015, um ano de estudos no Boston College custa US$ 48.540 – US$ 62.820 com alojamento no campus, conforme a localização do estabelecimento.
As famílias norte-americanas não fazem dívidas para ter uma piscina ou um 4×4, mas para garantir o essencial: casa, saúde, carro, educação, seguros. “Em outros países mais bem organizados, as pessoas não pagam pela saúde ou pela educação”, suspira com inveja Shrout. “Se eu fosse mãe na Suécia, nossa história seria bem diferente. Teria tido mais de dez dias de licença-maternidade. Não quero acusar a sociedade ou as empresas de crédito, pois a culpa também é minha. Mas, nos Estados Unidos, os jovens contraem mais dívidas do que em qualquer outra parte. Ficam entregues a si mesmos, o que é uma porta aberta para situações dramáticas. O sistema todo se torna predador.”
As dívidas do senhor Rivera ou da senhora Shrout são apenas pequenos córregos. Na escala nacional, formam o rio gigantesco dos empréstimos que engrossou 22% nos últimos três anos. Em 2014, o crédito ao consumidor atingiu um pico histórico de US$ 3,2 trilhões...

1              “The cumulative costs of predatory practices” [Os custos acumulados de práticas predatórias], Center of Responsible Lending, Durham, jun. 2015.
2    Ver Serge Halimi, “Pauvreté à américaine dans l’autre Californie” [Pobreza à americana na outra Califórnia], Le Monde diplomatique, set. 1988.
3    David Caplovitz, The Poor Pay More: Consumer Practices of Low-Income Families [Os pobres pagam mais: práticas de consumo das famílias de baixa renda], Free Press, Nova York, 1967.
4    DeNeen L. Brown, “The high cost of poverty: Why the poor pay more” [O alto custo da pobreza: por que os pobres pagam mais], The Washington Post, 18 maio 2009.

5              “Largest auto insurers frequently charge higher premiums to safe drivers than to those responsible for acidentes” [As grandes companhias de seguros de automóveis frequentemente cobram mais dos bons motoristas do que daqueles que provocaram acidentes], Consumer Federation of America, Washington, 28 jan. 2013.
6    DeNeen L. Brown, op. cit.
7    Rachel L. Swarns, “For a worker with little time between 3 jobs, a nap has fatal consequences” [Para uma trabalhadora com pouco tempo livre entre três empregos, um cochilo tem consequências fatais], The New York Times, 28 set. 2014.
8    Russell D. Kashian, Ran Tao e Claudia Perez-Valdez, “Banking the unbanked: Bank deserts in the United States” [Bancos para quem não tem banco: desertos bancários nos Estados Unidos], Universidade de Wisconsin, Madison, 2015.
9    Lisa Servon, “The high cost, for the poor, of using a bank” [O alto custo, para os pobres, do uso de um banco], The New Yorker, 9 out. 2013.
10                  “Graphic: Checking account risks at a glance” [Gráfico: visão rápida dos riscos de uma conta-corrente], The Pew Charitable Trust, Filadélfia, 2011.
11                  “Where Good Credit Is Sexy!!” [Onde ter crédito é sexy!!]. Disponível em: .
12                  “Data point: credit invisibles” [Ponto de dados: créditos invisíveis], Consumer Finance Protection Bureau, maio 2015. Disponível em: .
13                  Ver Christopher Newfield, “La dette étudiante, une bombe à retardement” [A dívida estudantil, uma bomba de efeito retardado], Le Monde diplomatique, set. 2012.
14                  As leis de usura norte-americanas derivam da common law inglesa. Cf. Steven Mercatante, “The deregulation of usury ceilings, rise of easy credit, and increasing consumer debt” [Desregulamentação dos tetos de usura, ascensão do crédito fácil e aumento crescente da dívida dos consumidores], South Dakota Law Review, Vermillion, 2008.
15                  “Frontline”, PBS, 23 nov. 2004.
16       Ibidem.

Maxime Robin
Jornalista


Ilustração: Filipe Rocha

NADANDO EM PRIVILÉGIOS

Em 5 de junho de 2015, em McKinney, no subúrbio de Dallas (Texas), um policial branco foi filmado enquanto maltratava adolescentes negros em trajes de banho. Vemos o agente perder a cabeça, apontar a arma, empurrar e imobilizar uma garota de 15 anos de biquíni. Os jovens tinham ido comemorar um aniversário à beira da piscina do Craig Ranch, uma gated community(condomínio fechado). Muitos eram negros e nem todos tinham o direito de estar lá. Num contexto nacional de brutalidades policiais em série, o vídeo amador provocou um escândalo. Na revista mensal The Atlantic, o historiador e jornalista Yoni Applebaum analisa o incidente de um ponto de vista racial e histórico. Observa aí o resultado da privatização de serviços públicos para afastar grupos indesejáveis – no caso, os negros. “Antes de 1950”, lembra, “os norte-americanos nadavam nas piscinas municipais tão frequentemente quanto iam ao cinema. Havia poucos clubes de natação, e as raras piscinas particulares eram sinal de grande riqueza.” Meio século depois, “o número de piscinas particulares nos Estados Unidos passou de 2.300 para mais de 4 milhões”.1 Para mergulhar nelas, é preciso morar em certos bairros ou se tornar sócio de um clube. Applebaum se apoia no historiador Jeff Wiltse para afirmar que a luta pelos direitos civis está diretamente na origem desse processo: “Muitos brancos abandonaram as piscinas públicas após o fim da segregação, mas não deixaram de nadar. Construíram suas próprias piscinas, em casa ou em clubes náuticos, de modo a poder controlar a classe social e a cor da pele dos banhistas”.2
Essa evolução não diz respeito só às piscinas. O oximoro “espaços públicos de propriedade privada” define todo espaço cujo acesso é estritamente regulamentado pelas empresas proprietárias ou por quem de direito. Esse fenômeno se multiplicou e compreende hoje parques e algumas praias ou beiras de lagos.
Michael Sandel, professor de direito em Harvard, debruçou-se sobre a economia dos “salvo-condutos” vendidos às pessoas e que valem em praticamente todas as ocasiões.“Nunca tivemos realmente um debate sobre esse assunto”, observa. “Até onde deixaremos agir o mercado? Em que medida ele serve ao bem público e a partir de que ponto o prejudica?” Hoje, pode-se pagar para furar a fila em inúmeros lugares, como parques de diversões. Nas estradas de Minneapolis, Seattle, San Diego e outras metrópoles congestionadas dos Estados Unidos, podemos comprar o acesso à via rápida com tarifas que variam conforme o grau do engarrafamento. A possibilidade de adquirir privilégios estendeu-se até mesmo... às prisões: no condado de Santa Barbara, Califórnia, um detento pode conseguir uma cela mais confortável pagando US$ 90 por noite. Sandel menciona também novas maneiras de ganhar dinheiro: servir de cobaia humana para a indústria farmacêutica (por volta de US$ 7,5 mil, às vezes mais, se o tratamento for perigoso ou complicações puderem ocorrer) ou alugar seus serviços a empresas que aliciam mercenários para lutar no Oriente Médio (US$ 1 mil por dia).
A demonstração assume novos contornos quando, nesse inventário da mercantilização pós-moderna, o jurista descobre uma transação que subverte o ideal democrático norte-americano. Ela ocorre diariamente no Capitólio de Washington. As reuniões do Congresso são públicas, mas a fila para assistir a elas é interminável, para grande frustração dos lobistas. Assim, empresas recrutam pessoas para ficar na fila em seu lugar, mediante pagamento. Esses indivíduos, afirma Sandel, são na maioria gente sem domicílio fixo. “No entanto”, lamenta, “todos deveriam ter livre acesso às instituições.”
O valor que a sociedade de mercado coloca mais em perigo, segundo Sandel, é a communality, o senso de vida coletiva. Ele próprio foi criado em Minneapolis em meados da década de 1960 e era torcedor dos Twins, a equipe de beisebol da cidade. No estádio, todos os lugares custavam quase o mesmo: US$ 3,50 para a tribuna de honra, US$ 1 para as arquibancadas. “Patrões e empregados faziam fila para comer os mesmos cachorros-quentes e beber as mesmas cervejas sem espuma. Quando chovia, todos se molhavam... Isso acabou. Se você for a um estádio hoje, verá espaços reservados, envidraçados, onde a elite se isola do resto do mundo. Já não há mistura de classes. Já não há fila única para os banheiros. Se chove, nem todos se molham.”4Cada vez mais, acrescenta, ricos e pobres “vivem vidas separadas, vão à escola e passeiam sem se cruzar”. Os tobogãs da piscina de McKinney são testemunhas dessa transformação social. A cidade tem três piscinas públicas, todas no lado onde se concentra a baixa renda. Nos bairros prósperos, as piscinas são particulares ou semiparticulares, com acesso exclusivo e controlado. No caso do Craig Ranch, cada condômino tem direito a um número de lugares limitado, que distribui a seu gosto.
A piscina onde nadavam os adolescentes que foram comemorar o aniversário em McKinney não era pública, mas reservada aos moradores de um bairro social e racialmente muito homogêneo. Esses moradores eram donos de um antigo bem comum que se tornara privilégio deles. (M.R.)


1              “McKinney, Texas, and the racial history of American swimming pools” [McKinney, Texas, e a história racial das piscinas norte-americanas], The Atlantic, Washington, 8 jun. 2015.
2    Jeff Wiltse, Contested Waters: A Social History of Swimming Pools in America [Águas contestadas: uma história social das piscinas na América], The University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2010.
3    Michael J. Sandel, What Money Can’t Buy: The Moral Limits of Markets [O que o dinheiro não pode comprar: os limites morais dos mercados], Farrar, Straus and Giroux, Nova York, 2013.
4          Ver Richard A. Keiser, “Sportifs de salon” [Esportistas de salão], Le Monde diplomatique, jul. 2008.



 
01 de Outubro de 2015
Palavras chave: Estadosunidoseconomiapobrespobbrezacapitalismodívidabancosbairros

Audiência debate projeto que propõe alterações no Simples nacional, do Portal Alesp


Senadora Marta Suplicy é a relatora do Projeto de Lei Complementar 125/2015, que visa aprimorar o Simples

Da Redação Fernando Caldas - Foto: Roberto Navarro


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Caio França, Marta Suplicy, Fernando Capez e Itamar Borges
Com o apoio da Frente Parlamentar do Empreendedorismo, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal realizou nesta segunda-feira, 23/11, audiência pública na Assembleia Legislativa para debater o PLC 125/2015, que amplia, simplifica e estimula o crescimento dos optantes do Simples nacional. A senadora Marta Suplicy (PMDB/SP), relatora do projeto, Guilherme Afif Domingos, presidente do Sebrae, o deputado federal Jorginho Mello (PR/SC), presidente da Frente Parlamentar da Micro e Pequena Empresa na Câmara dos Deputados, e os deputados estaduais Itamar Borges (PMDB) e Caio França (PSB), presidente e vice-presidente da Frente Parlamentar do Empreendedorismo da Assembleia Legislativa, compuseram a mesa de trabalho.

Na abertura do encontro, o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Fernando Capez, disse que esse espírito empreendedor que norteia a proposta de simplificação da tributação para micros e pequenas empresas tem inspirado os trabalhos da Parlamento paulista. "Esta audiência tem o objetivo de estimular a criatividade, o empreendedorismo e o crescimento da produção", declarou.

A senadora Marta Suplicy disse que o Simples Nacional, criado em 2006, diminuiu a informalidade em 25%. Mais de 10 milhões de empresas adotam o sistema ao lado de outros 5 milhões de microempreendedores individuais (MEI). No total, o Simples responde por uma arrecadação de R$ 620 bilhões. "O grande desafio agora é superar o medo que as empresas têm de crescer", disse a senadora, destacando que as mudanças de faixa hoje existentes na regulamentação do Simples desestimulam muitas empresas a ultrapassar determinados patamares de faturamento, pois assim passariam para faixas superiores de tributação.

Arrecadação e emprego

A relatora do projeto também destacou que a proposta dá um salto gigantesco ao que existe atualmente. Ela pondera que o Simples eleva a arrecadação de todos os entes da federação e que as micros e pequenas empresas são as que sustentam o crescimento do mercado de trabalho. "O setor contribui de forma expressiva para o saldo positivo de empregos em todos os setores", disse a senadora, com base em informações do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). "É graças ao desempenho das micros e pequenas empresas que o país mantém vem mantendo os níveis de emprego formal".

Guilherme Afif Domingos disse que o Projeto de Lei Complementar 125/2015 nasceu de estudos desenvolvidos por várias instituições de pesquisa em 2014, período em que esteve à frente da Secretaria Especial da Micro e Pequena Empresa. A proposta foi apresentada neste ano ao Congresso Nacional, depois de ser sistematizada. Aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto tramita agora no Senado. "Em todo esse processo, não houve contestações. Porém, agora, a Receita Federal faz uma mobilização para colocar os prefeitos contra a proposta", disse Afif Domingos.

Segundo o presidente do Sebrae, os municípios não perdem com a simplificação, quem perde é a burocracia da máquina tributária. "Nosso projeto simplifica e traz mais arrecadação, pois facilita o sistema de tributação. O cidadão do Simples é nacional. Paga os tributos de uma só vez, e a arrecadação é distribuída entre os entes federados. Simplificação. Ninguém aguenta mais a complexidade dos tributos. Quando todos pagam menos, os governos arrecadam mais", concluiu.

Afif Domingos fez um alerta. "As micros e pequenas empresas representam segurança para a arrecadação e para o nível de emprego, entretanto, em outubro, o segmento fechou 49 mil vagas. Existe uma crise econômica, calcada em uma crise política, que pode se transformar em uma crise social. É como uma represa na iminência de se romper", comparou o presidente do Sebrae, que cobra do Senado a aprovação do projeto ainda neste ano.

Municípios penalizados

O prefeito de São Manuel e presidente da Associação Paulista de Municípios, Marcos Monti, disse que gostaria que a informação de que as cidades vão se beneficiar com as mudanças do Simples chegassem ao movimento municipalista. Os estudos da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) apontam o contrário, segundo ele. O impacto da proposta seria a perda de R$ 1,2 bilhão para os municípios, com a diminuição de arrecadação de ISS e ICMS.

A avaliação da CNM é de que o percentual de empresas beneficiadas com a elevação do limite de faturamento seria inferior a 1% das micros e pequenas empresas. A entidade propõe que o aumento do limite faturamento para o Simples seja feito gradualmente, de acordo com o IPCA. "Os municípios já estão muito penalizados com a crise econômica. Nossa preocupação é que fiquem ainda mais sufocados. Queremos discutir e encontrar uma solução", afirmou Monti.

"Entendemos as incertezas e os problemas dos municípios, mas é preciso dar sequência a esse trabalho de simplificação", rebateu o presidente da Frente Parlamentar da Micro e Pequena Empresa na Câmara dos Deputados, Jorginho Mello. "Essa atualização é essencial para quem trabalha e quem produz no Brasil. Não podemos voltar atrás", disse.

A proposta

Um dos pontos mais importantes do Projeto de Lei Complementar 125/2015 é a redução do número de faixas de tributação das empresas enquadradas no Simples, de vinte para sete. Atualmente, existem 20 faixas de tributação (a primeira até R$ 180 mil e a última entre R$ 3,42 milhões e R$ 3,6 milhões), e a progressão se dá de acordo com o crescimento da receita. A proposta que tramita no Senado diminui as faixas de tributação para apenas sete (a primeira até R$ 225 mil e as demais em progressão até o limite de R$ 14,4 milhões) e suaviza a passagem de uma faixa para outra. Ou seja, o Simples passa a ter uma rampa suave por meio da tributação por faixas, igual ao modelo do imposto de renda da pessoa física. A nova alíquota decorrente do aumento da receita somente incidirá no que exceder a faixa anterior. A medida incentiva o crescimento das empresas.

Outra novidade é a criação de regime de transição para a saída do Simples. Hoje, as empresas do comércio que saem do Simples por terem excedido o limite de receita têm aumento de 54% na carga tributária. Na indústria, o aumento é de 40% e nos serviços, 35%. A revisão de faixas permite aproximar de forma suave a saída do Simples da carga tributária do Lucro Presumido, criando um regime de transição necessário para tornar o modelo mais racional. A situação atual incentiva a adoção de subterfúgios e ocasiona perda de eficiência das pequenas empresas.

O projeto também trata do aumento do limite para o MEI de R$ 60 mil para R$ 72 mil; da criação da Empresa Simples de Crédito, novo instrumento de crédito que permitirá a qualquer cidadão organizado como empresa emprestar seus recursos aos pequenos negócios do seu município; a criação de Refis para as micros e pequenas empresas, possibilidade de parcelamento das dívidas tributárias em até 180 vezes, com critérios utilizados para grandes empresas (redução de multa e juros); a possibilidade de pagamento do INSS e FGTS em uma única guia, juntamente com o Simples; ampliação do regime do MEI aos agricultores familiares; e facilitação de exportação, com simplificação burocrática e redução de taxas, entre outras.

Participaram da audiência empresários, deputados federais e estaduais, secretários municipais de desenvolvimento econômico, vereadores, dirigentes empresariais, agentes de crédito e representantes de ONGs.

O presidente da Frente Parlamentar do Empreendedorismo, Itamar Borges, ressaltou a importância da audiência pública e a necessidade de que o projeto seja aprovado pelo Senado ainda neste ano, pois se trata de um setor que tem mantido os níveis de emprego, apesar da grave crise.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Como tirar esse traçado do papel, IstoÉ


Os usuários da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que embarcam em estações como a da Luz e a da Barra Funda, duas das mais movimentadas de São Paulo, já estão habituados a encontrar vagões com a logomarca da empresa de logística MRS estacionados nos trilhos vizinhos aos dos trens de passageiros. Com 1.643 km de malha ferroviária, a companhia carioca transporta cargas de gigantes como a Votorantim Metais, a BASF e a MMX. Por utilizar os mesmos trilhos do transporte público, que são prioridade da CPTM, a MRS, que faturou R$ 801 milhões no terceiro trimestre, tem o seu trabalho prejudicado.
A situação, no entanto, seria diferente caso a obra do Ferroanel, enfim, saísse do papel. Em uma terceira tentativa, o governo federal quer incluir o projeto nas negociações com as concessionárias de ferrovia, por meio da renovação antecipada das concessões. Em contrapartida, prolongaria as datas dos contratos por 30 anos e exigiria novos aportes. Parte do programa de investimento em ferrovias, orçado em R$ 99,6 bilhões, o Ferroanel é dividido em dois trechos: o Norte, com 52 km de extensão e custo estimado em R$ 2 bilhões, e o Sul, com 58 km e valor ainda indefinido.
Por enquanto, os estudos para viabilidade do projeto foram feitos apenas para o trecho Norte, que fará a ligação entre a região de Campo Limpo Paulista e Engenheiro Manoel Feio. Uma análise feita pela Empresa de Planejamento e Logística (EPL), do governo de São Paulo, aponta que a ferrovia poderá movimentar 40 milhões de toneladas de carga até 2040, tendo como principal demanda os produtos da indústria siderúrgica, de minério de ferro e de granéis vegetais.
Para o sócio da consultoria Macrologística, Olivier Girard, o fato do Ferroanel não dividir trilhos com a CPTM será fundamental para a logística desses produtos. "Hoje em dia, poucas cargas passam pela cidade de São Paulo”, diz Girard. "Com a abertura do Ferroanel, a locomoção poderá ser feita o dia todo”. A construção do anel ferroviário voltou a ser discutida depois de duas tentativas frustradas. O projeto foi apresentado em 2003 pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que previu a sua conclusão em três anos.
No entanto, a primeira tentativa concreta de tirar o plano do papel ocorreu apenas em meados de 2008, com uma parceria frustrada entre o governo federal e o estadual, em conjunto com a companhia MRS. Já a segunda tentativa, em 2012, veio com a inserção da obra na primeira versão do Programa de Investimento em Logística (PIL I), que também não obteve avanços por rejeição dos investidores. Agora, o governo federal quer propor uma renovação nas concessões de ferrovias atuais. A intenção é que, antecipando a renovação dos contratos, as concessionárias invistam direta e indiretamente em obras já acordadas com a União.
A abertura das negociações para a renovação das concessões foi anunciada em junho, com o lançamento do PIL II, porém, apenas ao final de outubro foi criada uma comissão na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para oficializar os pedidos contratuais. Além de proporcionar um frete logístico 25% menor que o rodoviário, o transporte sobre trilhos reduz o fluxo de caminhões. De acordo com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), cada composição de trem de 50 vagões retira aproximadamente 195 caminhões de circulação.
No caso do Ferroanel Norte, a EPL projeta que a redução seria de 4,2 mil caminhões por dia. Segundo o coordenador do curso de engenharia civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas, Luiz Figueiredo, se concretizado, o Ferroanel trará um ganho não apenas à logística nacional, mas à competitividade das empresas, que terão menos perdas de produto e, consequentemente, menos gastos. "Os caminhões passam por estradas esburacadas e parte da carga é deixada pelo caminho”, diz Figueiredo. Especialistas ressaltam ainda que o Ferroanel será um dos principais estimuladores do Porto de Santos, o mais movimentado da América Latina.
Atualmente, a dificuldade de acesso ao porto por rodovias acaba tornando-o ineficiente. No entanto, com a opção da ferrovia, isso pode mudar. Do total de cargas movimentadas nos terminais, 25% são feitas por trilhos, um crescimento de 80% nos últimos oito anos. A tendência, com o anel ferroviário, é que o movimento fique ainda maior. "O Ferroanel fará com que o Porto de Santos opere com mais eficiência”, diz Carlos Cavalcanti, diretor do departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). "Hoje os terminais estão ociosos, esperando pelas cargas, que têm dificuldade de chegar.”

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Nordeste desponta como polo da energia eólica brasileira, do Portal Brasil

INFRAESTRUTURA


Energia limpa

Em 12 de outubro, a geração eólica nordestina atingiu a marca histórica de 3.689 megawatts (MW) de potência
por Portal BrasilPublicado13/11/2015 09h24Última modificação13/11/2015 15h15
Foto: Marcos Santos/USP ImagensOs ventos do Nordeste possuem características ideais para a atividade eólica
Os ventos do Nordeste possuem características ideais para a atividade eólica
A energia eólica está revolucionando o Nordeste brasileiro. Em 12 de outubro, a geração eólica nordestina atingiu a marca histórica de 3.689 megawatts (MW) de potência. No dia, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a fonte chegou a atender por volta de 46% de toda a demanda regional.
A Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeoólica) informa que há 234 parques eólicos no Nordeste. A região detém 84% de toda a capacidade instalada em território nacional, o equivalente a uma potência de 6,1 gigawatts (GW) --em setembro, o Brasil alcançou uma capacidade eólica total instalada de 7,8 GW.  E isso é bom para todo o País, pois ajuda a equilibrar o fornecimento de eletricidade dos brasileiros das mais diferentes regiões.
"A rede elétrica brasileira é como se fosse um grande condomínio: ela junta todos os geradores naquelas grandes linhas de transmissão que atravessam o País", comparou. "Então, a energia eólica que é gerada no Nordeste é dividida para todos os brasileiros, quando acendem uma luz", ressaltou o professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade de Brasília (UnB) Rafael Shayani.
Atualmente, a energia elétrica gerada pelos ventos responde por 5,1% da matriz energética nacional. A Abeeólica estima que, em 2020, a fonte venha a representar 13% de toda a produção energética nacional. No 22º leilão de energia nova promovido pelo governo neste ano (A-3/2015), a fonte eólica atendeu 80% da demanda total, comercializando 538,8 MW. Isso significa mais de R$ 2 bilhões de investimento no setor e 8 mil empregos. Além disso, significa que a partir de 1º de janeiro de 2018, a energia eólica abastecerá 1 milhão de lares brasileiros.
"A fonte eólica nos atrai nesse momento”, disse o presidente da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia Elétrica (Abiape), Mário Menel. Os autoprodutores, inclusive, focam em investimentos no Piauí, disse.
Questão ambiental
Rafael Shayani coloca o Brasil como referência internacional na luta pela conservação do planeta por já utilizar energia renovável das hidrelétricas.
"A questão energética é um tema que aflige todos os países. A maioria deles utiliza carvão ou derivados do petróleo, o que aumenta a emissão de gases de efeito estufa, causando muitos problemas climáticos", lembra. "O Brasil agora está tendo um destaque muito especial na energia eólica, o que é muito positivo", diz.
Por que o Nordeste?
De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), os ventos do Nordeste possuem características ideais para a atividade eólica: são unidirecionais, constantes e sem rajadas, além de manterem, por 80% do tempo, em velocidades superiores a 8 metros por segundo.
O geógrafo da UnB Telmo Amand Ribeiro explicou os motivos climáticos de o Nordeste ter se afirmado como polo produtor de energia eólica. Segundo ele, as chapadas do sertão brasileiro não permitem que os ventos que incidem sobre o litoral sigam para o interior do País.
"Isso é devido aos ventos alísios, que só atingem o litoral nordestino, do Maranhão ao Rio Grande do Norte, mas no Ceará, principalmente", explicou. "Esses ventos sopram do Equador para os trópicos", concluiu Ribeiro.

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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Sandra, um primor de Gilberto Gil


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Gilberto Gil

Maria Aparecida, porque apareceu na vida
Maria Sebastiana, porque Deus fez tão bonita
Maria de Lourdes
Porque me pediu uma canção pra ela

Carmensita, porque ela sussurou: "Seja bem-vindo"
(No meu ouvido)
Na primeira noite quando nós chegamos no hospício
E Lair, Lair
Porque quis me ver e foi lá no hospício

Salete fez chafé, que é um chá de café que eu gosto
E naquela semana tomar chafé foi um vício
Andréia na estréia
No segundo dia, meus laços de fita

Cintia, porque, embora choque, rosa é cor bonita
E Ana, porque parece uma cigana da ilha
Dulcina, porque
É santa, é uma santa e me beijou na boca

Azul, porque azul é cor, e cor é feminina
Eu sou tão inseguro porque o muro é muito alto
E pra dar o salto
Me amarro na torre no alto da montanha

Amarradão na torre dá pra ir pro mundo inteiro
E onde quer que eu vá no mundo, vejo a minha torre
É só balançar
Que a corda me leva de volta pra ela:
Oh, Sandra

© Gege Edições Musicais ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo)

"Em 94, eu estava dando uma entrevista coletiva em Curitiba, quando uma moça entrou e disse: 'Não se lembra de mim?' Eu fiquei olhando, olhando, e ela então gritou: 'Andréia na estréia!' E eu: 'Claro!' Andréia era a menina que eu tinha conhecido, em 76, na passagem do show dos Doces Bárbaros pela cidade (antes de seguirmos para Florianópolis, onde eu fui preso por porte de maconha e posto em tratamento ambulatorial numa clínica, episódio em que a canção é baseada). Tínhamos ficado juntos na ocasião, e ela que me levou a um armarinho para comprar as fitas com que me enlaçou os cabelos trançados. Desde então nunca mais tínhamos nos reencontrado."

*

"Todas as meninas mencionadas em Sandra foram personagens daqueles dias que eu vivi entre Curitiba e Florianópolis. Maria Aparecida, Maria Sebastiana e Maria de Lourdes me atenderam no hospício durante o internamento imposto pela justiça enquanto eu aguardava o julgamento. A de Lourdes me falava a toda hora: 'Você vai fazer uma música pra mim, não vai?' 'Vou'. Carmensita: essa - foi interessantíssimo -, logo que eu cheguei, ela veio e me disse, baixinho: 'Seja bem-vindo'. Lair era uma menina de fora, uma fã que foi lá me visitar. Salete era de lá: 'Meu café é muito ralo', me falou. 'É exatamente como eu gosto, chafé', respondi. Cíntia: também de Curitiba, como Andréia. Quando passamos pela cidade, me levou ao sítio dela uma tarde; foi quem me deu uma boina rosa com a qual eu compareceria ao julgamento mais adiante, em Florianópolis, e com a qual eu apareço no filme Os Doces Bárbaros. Ana: ficou minha amiga até hoje; de Florianópolis. E Dulcina, que era a mais calada, a mais recatada de todas na clínica, a mais mansa - era como uma freira -, foi a única que um dia veio e me deu um beijo na boca.

"Sandra, citada no final da letra, era minha mulher, que preferiu não ir a Florianópolis e com a qual eu associei a idéia do hexagrama da torre, tirado no I Ching, um dos meus livros de cabeceira naquele período: a que tomava conta de tudo; onde eu estivesse, o seu olhar espiritual me acompanharia; seu ente se espraiaria, estendendo-se por todas as mulheres com quem eu convivesse. A ela as mulheres citadas na letra remetiam por representarem o feminino, a minha sustentação naquele momento.

"Mas o que ninguém sabe, e que não se revela de nenhuma maneira na canção - o seu lado oculto -, é que há duas Sandras, a que é mencionada no fim e a do título, que não se refere à Sandra com quem eu era casado, mas a uma menina linda, maravilhosa, também chamada Sandra, que tietava o Caetano em Curitiba, amiga da Andréia - que me tietava."