segunda-feira, 30 de setembro de 2013

CNJ conclui que Justiça nos Estados julga quase um terço de ações de competência da Justiça Federal


O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) constatou que quase um terço dos processos de competência da Justiça Federal tramitou, em 2011, nos tribunais de justiça dos estados.
Os dados, divulgados pelo CNJ nesta segunda feira, 30, constam do estudo Competência Delegada – Impacto nas Ações dos Tribunais de Justiça, elaborado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias, do CNJ.
Segundo o relatório, o Judiciário Estadual responsabilizou-se pela tramitação de 27% dos 7,4 milhõesde processos da Justiça Federal, o que significou um acréscimo de quase 2 milhões de ações à Justiça dos Estados.
Em São Paulo e no Tocantins, 44% das ações de competência federal tramitaram na Justiça Estadual.
Essa situação ocorre porque a Justiça Estadual tem competência para julgar ações federais nas comarcas que não alojam unidades da Justiça Federal.
A Constituição – artigo 109, parágrafo 3º – impõe que serão processadas e julgadas na Justiça Estadual as causas contra instituição de Previdência social, quando a comarca não contar com Vara Federal. De acordo com o estudo, em 2011 foram distribuídas 302,6 mil novas ações federais à Justiça comum, o que representa 13% dos cerca de 2,4 milhões dos processos de competência federal distribuídos naquele ano.
Já o estoque de processos de competência federal em tramitação nos tribunais estaduais subiu de 23% para 27%. Os porcentuais consideram os dados informados pelo Judiciário de 24 estados.  ”Observa-se que, apesar do crescimento de 6% ao ano de Varas Federais, não houve redução no quantitativo de processos em tramitação na Justiça estadual”, afirma Janaína Penalva, diretora do Departamento de Pesquisas Judiciárias, do CNJ.
De 2009 para 2011, a quantidade de Varas Federais aumentou de 743 para 834.
O estudo mostra que, em 2011, a Justiça dos Estados julgou 11% dos processos federais. Entretanto, segundo o relatório, a Justiça Federal é mais célere na decisão dos processos – solucionou no ano87% do volume de ações distribuídas, enquanto nas varas estaduais esse patamar ficou em 73%. 
Embora mais lenta, segundo conclusão do CNJ, a Justiça estadual tem aumentado a produtividade de forma mais significativa que as varas federais. MATEUS COUTINHO E FAUSTO MACEDO

O Exército perde a batalha, por Mauricio Dias, na Carta Capital


Os militares travam uma guerra, ainda sem desfecho, com as regras da democracia
por Mauricio Dias — publicado 28/09/2013 10:40
Tânia Rêgo/ABr
Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro
Grupo protesta na segunda-feira 23 pela reabertura dos arquivos da ditadura militar durante visita dos integrantes da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, na que abrigou o DOI-Codi
Passados quase 50 anos do golpe de 1964, 21 dos quais sob uma ditadura que torturou e matou presos políticos nos casarões assombrados e nos porões dos quartéis, as Forças Armadas brasileiras, notadamente o Exército, têm se deslocado com frequência para uma rota de colisão com as regras democráticas. Os generais, coronéis, oficiais e suboficiais reencarnam seus antecessores com o mesmo espírito. Ou seja, como se ainda tivessem o poder de executar regras inscritas nas cartilhas autoritárias.
Um exemplo dessa situação descabida repetiu-se na segunda-feira 23, quando a Comissão Estadual da Verdade (RJ), presidida pelo advogado Wadih Damous, além de parlamentares, foi conhecer o prédio da Rua Barão de Mesquita, no bairro da Tijuca, na zona norte da cidade, tristemente famoso por ter sido sede do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, mais conhecidos como DOI-Codi, sigla do mais temido órgão de repressão da ditadura.
O diálogo travado entre a deputada Luiza Erundina e o coronel Luciano Simões, comandante da Polícia do Exército (PE), fala mais do que as teorias sobre o choque entre uma democracia parcialmente resgatada e uma ditadura parcialmente insepulta.
Simões pôs-se a falar e a enaltecer a história da PE. Os visitantes ouviam calados por dever de ofício. A deputada Erundina, no entanto, notou que o militar, embalado pela narrativa pretensamente patriótica, passou a borracha na tragédia vivida dentro daquele quartel durante os anos 1970, apogeu da ditadura. A história não faz sentido com supressão de passagens de alguns episódios. Foi mais ou menos o que ela disse para o narrador fardado. Em resposta, ouviu uma observação do coronel Simões: “Eu não quero politicar”.

A parlamentar, autora de um projeto malsucedido, que punha fim à Lei da Anistia, retrucou: “Mas eu quero politizar”. Naquelas circunstâncias, houvesse ou não diálogos ríspidos, nada poderia melhorar o constrangimento do ambiente. Nem mesmo com a fidalguia protocolar de um convidativo cafezinho oferecido aos visitantes.
O mal-estar daquele dia era a extensão de situações semelhantes iniciadas no gabinete de Celso Amorim, ministro da Defesa, onde o general Enzo Peri, comandante do Exército, reuniu-se com civis para decidir se seria “permitida” a entrada de um grupo de parlamentares e advogados na ex-sede do DOI-Codi.
Peri foi apanhado de surpresa quando os parlamentares da Subcomissão de Direitos Humanos do Senado, como alternativa, anunciaram que levariam ao plenário o requerimento com o pedido oficial de visita. O general propôs formular um convite. Isso resultou, no entanto, em arrastada troca de comunicações sobre a lista de convidados. O Exército tentou vetar a presença de Erundina. O veto foi derrubado pelos parlamentares.
O objetivo da visita era e ainda é espinhoso. Transformar o local em centro de memória sobre a ditadura. Uma proposta que o general Peri chamou de “provocação barata”. Pelos parâmetros da caserna, talvez seja. Mas já não seria hora de alterar o conteúdo e a perspectiva de ensino nas escolas militares?
Oposição empacou I
As pesquisas continuam a mostrar a popularidade de Dilma, como candidata à reeleição, assim como a avaliação do governo dela, em alta. Números recentes do Ibope, em Mato Grosso do Sul, apontam um índice de 51% de aprovação no item “ótimo e bom”. O exemplo em Mato Grosso do Sul, região conservadora, pode expressar o efeito em escala nacional sobre a aprovação da administração. Fato que, provavelmente, será confirmado em próximas sondagens.
Oposição empacou II
Os porcentuais de intenção de voto, recuperados por Dilma após a queda vertiginosa, em julho, pareciam escoar para Marina.
Mas pesquisa do Vox Populi, publicada por CartaCapital, captou no início de setembro uma perda de 7 pontos porcentuais. Ela recuou de 26% para 19%. A sondagem do Ibope, divulgada na quinta-feira 26, confirma queda de Marina ainda maior: ela tem 16% das intenções de voto. Aécio Neves (13%), José Serra (12%) e Eduardo Campos (4%) empacaram.
A votação perdida por Dilma não teve herdeiros. Ao recuperar os votos perdidos, a presidenta pode voltar a sonhar com a possibilidade de vencer, em 2014, no primeiro turno. Em caso de segundo turno, se a eleição fosse hoje, ela venceria todos os adversários com grande margem de diferença.
O que é o que é? IJosé Serra explicou a um amigo a razão da frequência dele à Casa das Garças, núcleo dos tucanos, no Rio: “Convívio e afinidade de pensamento”, disse. Provocado pelo interlocutor, identificou-se como “fiscalista modernizante”, e não “um liberal mais à esquerda”.
Seja lá o que o rótulo significar, isso mostra a inquietação de Serra com a condenação que sofre como um bastião da direita.
Já se culpou cem vezes o PT por ter empurrado Serra para a direita, onde se acomodou mais por conveniência eleitoral do que por afinidade política. De qualquer forma, ficou preso na teia da aranha.
O que é o que é? IIAliás, nem só os tucanos visitam este think tank da economia conservadora. Arminio Fraga, líder do grupo, também recebe por lá o senador petista Lindbergh Farias, presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Será ele, Lindbergh, um “fiscalista modernizante” ou “um liberal mais à esquerda”?
A história vai julgarA afirmação do advogado paulista Ives Gandra, de que José Dirceu foi condenado “sem provas”, mais visivelmente no crime por “formação de quadrilha”, denuncia uma articulação política no Supremo Tribunal Federal para condenar o ex-chefe da Casa Civil do primeiro governo Lula. Além desse efeito prático, Gandra, espécie de guru da direita no campo jurídico, deixa um legado teórico: os ministros Joaquim Barbosa e Luiz Fux estão muito além do Opus Dei.
Eleição apimentadaNa eleição para o governo de Minas, segundo as pesquisas, o petista Fernando Pimentel, ministro de Dilma, ex-prefeito de Belo Horizonte, vai à frente. Aécio Neves tenta empurrar para a disputa o tucano Pimenta da Veiga, ex-ministro de FHC e também ex-prefeito de BH. Confirmadas as candidaturas, a disputa será de Pimentel contra Pimenta.

domingo, 29 de setembro de 2013

Militância vira critério para receber moradia do Minha Casa Minha Vida


Onze das 12 entidades com projetos aprovados pelo Ministério das Cidades são dirigidas por filiados ao PT; quem marca presença em protestos e até ocupações ganha prioridade na fila da casa própria em São Paulo

28 de setembro de 2013 | 17h 47

Adriana Ferraz e Diego Zanchetta, O Estado de S.Paulo
Líderes comunitários filiados ao PT usam critérios políticos para gerir a maior parte dos R$ 238,2 milhões repassados pelo programa Minha Casa Minha Vida Entidades para a construção de casas populares na capital. Onze das 12 entidades que tiveram projetos aprovados pelo Ministério das Cidades são dirigidas por filiados ao partido. Suas associações privilegiam quem participa de atos e manifestações de sem-teto ao distribuir moradias, em vez de priorizar a renda na escolha. Entre gestores dos recursos, há funcionários da gestão de Fernando Haddad (PT), candidatos a cargos públicos pela sigla e até uma militante morta há dois anos.
A partir de repasses diretos, as associações selecionadas pelo governo federal escolhem quem vai sair da fila da habitação em São Paulo. Os critérios não seguem apenas padrões de renda, mas de participação política. Quem marca presença em eventos públicos, como protestos e até ocupações, soma pontos e tem mais chance de receber a casa própria.
Para receber o imóvel, os associados ainda precisam seguir regras adicionais às estabelecidas pelo programa federal, que prevê renda familiar máxima de R$ 1,6 mil, e prioridade a moradores de áreas de risco ou com deficiência física. A primeira exigência das entidades é o pagamento de mensalidade, além de taxa de adesão, que funciona como uma matrícula. Para entrar nos grupos, o passe vale até R$ 50.
Quem paga em dia e frequenta reuniões, assembleias e os eventos agendados pelas entidades soma pontos e sai na frente. O sistema, no entanto, fere o princípio da isonomia, segundo o advogado Márcio Cammarosano, professor de Direito Público da PUC-SP. “Na minha avaliação, esse modelo de pontos ainda me parece inconstitucional, além de escandaloso e absolutamente descabido. Ele exclui as pessoas mais humildes, que não têm condições de pagar qualquer taxa ou mesmo de frequentar atos públicos”, afirma.
50 mil pessoas. Os empreendimentos são projetados e construídos pelas associações, que hoje reúnem uma multidão de associados. São mais de 50 mil pessoas engajadas na luta pelo direito à moradia. Além das entidades dos petistas, há ainda uma outra dirigida por um filiado ao PCdoB.
A força política dos movimentos de moradia, que só neste ano comandaram mais de 50 invasões na cidade, pressionam não só o governo federal, mas a Prefeitura. Em agosto, Haddad publicou um decreto no qual se comprometeu a permitir que entidades possam indicar parte das famílias que serão contempladas com moradias em sua gestão. A promessa de campanha é entregar 55 mil até 2016 – as lideranças querem opinar sobre 20 mil desse pacote.
O cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV, ainda alerta para o um efeito colateral do esquema implementado na capital pelas entidades, que é a cooptação política dos associados, com fins eleitorais.
“O governo deve imediatamente intervir nesse processo e rediscutir as regras. Isso remete ao coronelismo. Além disso, a busca pela casa própria não pode ser um jogo, onde quem tem mais pontos ganha.”
Quem é quem. A maior parte das entidades é comandada por lideranças do PT com histórico de mais 20 anos de atuação na causa. É o caso de Vera Eunice Rodrigues, que ganhou cargo comissionado na Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab) após receber 20.190 votos nas últimas eleições para vereador pelo partido.
Verinha, como é conhecida, era presidente da Associação dos Trabalhadores Sem Teto da Zona Noroeste até março deste ano – em seu lugar entrou o também petista José de Abraão. A entidade soma 7 mil sócios e teve aval do Ministério das Cidades para comandar um repasse de R$ 21,8 milhões. A verba será usada para construir um dos três lotes do Conjunto Habitacional Alexius Jafet, que terá 1.104 unidades na zona norte.
No ano passado, Verinha esteve à frente de invasões ocorridas em outubro em prédios da região central, ainda durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD), e em pleno período eleitoral. Em abril, foi para o governo Haddad, com salário de R$ 5.516,55. A Prefeitura afirma que ela está desvinculada do movimento e foi indicada por causa de sua experiência no setor.
Outra entidade com projeto aprovado – no valor de R$ 14 milhões –, o Movimento de Moradia do Centro (MMC), tem como gestor Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, filiado ao PT há mais de 30 anos e atual candidato a presidente do diretório do centro. Com um discurso de críticas à gestão Kassab e de elogios a Haddad, ele também nega uso político da entidade. “Qualquer um pode se filiar a nós e conseguir moradia. Esse é o melhor programa já feito no mundo”, diz sobre o Minha Casa Minha Vida Entidades.
Ministério diz que desconhece esquema de pontuação. O Ministério das Cidades afirmou desconhecer que a presença em atos públicos, como protestos e ocupações, renda pontos às pessoas que lutam por uma moradia na capital. A pasta informou apenas que as entidades podem criar regras adicionais às estabelecidas pelo Minha Casa Minha Vida, sem a necessidade de aprová-las no governo.
Da mesma forma, o ministério disse que não pode interferir em regras internas dos movimentos de moradia e, por isso, não tem como impedir a cobrança de taxas e mensalidades.
O ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro (PP), não quis dar entrevista. Por meio de nota, sua assessoria ressaltou que as entidades não são selecionadas, mas habilitadas a receber verba mediante o cumprimento de uma série de atribuições, como dar apoio às famílias no desenvolvimento dos projetos, assim como na obtenção da documentação necessária. O processo não segue, segundo a pasta, critérios políticos. Além disso, as associações devem se submeter a uma prestação de contas, feita pela Caixa Econômica Federal, que financia as unidades.

O mundo segundo Mujica


29 de setembro de 2013 | 2h 04

MAC MARGOLIS - O Estado de S.Paulo
Não foi o antecipado discurso de Barack Obama que comoveu o mundo na semana passada, na Assembleia-Geral da ONU. Nem tampouco o brado de Dilma Rousseff. As palavras que mais reverberam em Nova York, para depois acenderem as redes sociais na internet, foram as do presidente uruguaio, José Mujica.
Sua pauta pouco tinha a ver com os anseios da hora, como a guerra na Síria ou o escândalo da espionagem americana, que tanto indignou Brasília. Bisbilhotar o Uruguai? "Seria uma perda de tempo", diz. "Venho do Sul", abriu seu discurso. A referência foi ao seu país meridional, mas também remete ao posicionamento discreto que ocupa no enredo mundial, fora do radar e dos conflitos das grandes potências.
Assim, Mujica projetou sua pequena nação como uma espécie de reserva moral. Se hoje os países emergentes reclamam seu lugar ao sol, o Uruguai orgulha-se do seu paradeiro humilde, "esquina do Atlântico com o Prata", um portento só se for na agenda social.
Mujica esbanja o charme de um homem fora de seu tempo. A visão desse ex-guerrilheiro de 78 anos, que abriu mão da residência presidencial, que consome verduras cultivadas em sua própria horta e doa boa parte do salário para caridade, vem de mais longe. Uma visão dos anos 70.
Orador inspirado, Mujica desenhou na tribuna das nações um mundo melhor, sem o capitalismo selvagem e a cobiça. "Se aspirarmos a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para podermos viver." E como salvar o planeta, indagou, se "em cada minuto gastamos US$ 2 milhões em ações militares?". Sua receita: "Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem frivolidades, para ajudar a levantar os pobres do mundo."
O evangelho segundo Mujica soa tão belo quanto distante da América Latina real, onde a maioria dos "excluídos" anseia participar do capitalismo. "A América Latina hoje quer mais, não menos", diz Bernardo Sorj, estudioso uruguaio. Ao mesmo tempo, seu discurso anticapitalista é atual. Seu libelo contra a cobiça e os excessos do vil metal tem ampla ressonância, especialmente no jogo eleitoral.
Da Cidade do México a Santiago, os partidos políticos desfilam seu carnaval de siglas, mas nenhum ousa assumir a identidade liberal. Em 1992, quando o historiador Francis Fukuyama decretou o "fim da história", estava se referindo ao fim do embate ideológico da Guerra Fria que rachava os países entre comunismo e capitalismo. Vitória para o consenso liberal, disse Fukuyama, pois as alternativas dirigistas ruíram com o Muro de Berlim.
Menos na America Latina. Por aqui, a ojeriza ao liberalismo é consenso continental. Claro, a venda dos elefantes estatais, o fim do monopólio na industria de petróleo e a abertura comercial impulsionaram o comércio e criaram empregos, mas não se fala nisso em voz alta, muito menos no horário eleitoral gratuito. Assumir a bandeira liberal na América Latina de hoje é como confessar pedofilia. A historia política na região acabou. Somos todos social-democratas.
Há várias explicações para o conformismo latino. A desigualdade social é tachada como mazela dos mercados. O colapso do capitalismo global, em 2008, não ajudou. Pior, em muitos países, a direita, afeita ao discurso liberal, se fez sócia dos militares, mesmo quando os ditadores optaram por turbinar o Estado.
Mas também tem a ver com a força inercial de um Estado balofo, com gula de impostos, que ocupa o espaço da iniciativa privada, premia amigos e controla sindicatos e empregos. Reféns do gigante, com Síndrome de Estocolmo, nos afeiçoamos à sua sombra. Uma utopia claustrofóbica dos anos 70.

A retórica da pobreza e a pobreza do investimento - ROLF KUNTZ

O governo tirou da pobreza extrema em apenas dois anos 22 milhões de brasileiros, disse a presidente Dilma Rousseff, em Nova York, em discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas. Se isso for verdade, essa terá sido a informação mais importante da fala presidencial muito mais importante que a maior parte do palavrório pronunciado naquele dia por vários governantes. Falta esclarecer um detalhe: se as transferências governamentais forem interrompidas, quantas daquelas pessoas serão capazes de se manter fora da miséria? Quantas se tornaram, nos últimos dois anos, mais produtivas e menos dependentes de auxílio oficial? Nenhuma pessoa razoável se opõe a programas de socorro aos mais necessitados. Mas por quanto tempo será possível manter programas tão amplos, e com efeitos ainda pouco claros sobre a capacidade produtiva, se a economia continuar avançando tão lentamente quanto nos últimos dois anos e nove meses? Por enquanto, as previsões mais otimistas apontam para este ano um crescimento econômico de 2,4%.

Essa expansão será puxada, segundo as novas projeções da Confederação Nacional da Indústria (CNI), por investimentos 8% maiores que os do ano passado. Essa é a parte mais interessante do cenário.

Se as estimativas forem confirmadas, o aumento do produto interno bruto (PIB) terá sido alimentado, em 2013, menos pelo consumo do que pela aplicação de recursos em máquinas, equipamentos, instalações diversas e obras de infraestrutura.

A expansão econômica ainda será modesta, mas o potencial de crescimento será reforçado e resultados melhores poderão surgirem breve.

Mais uma vez, no entanto, o quadro fica bem menos bonito quando se examinam os detalhes.

A maior parte do crescimento da produção de bens de capital - máquinas e equipamentos- foi concentrada no setor de material de transporte, especialmente de caminhões.

Boa parte da expansão dependeu também da indústria de equipamentos agrícolas, pormenor facilmente explicável pelo bom desempenho da agropecuária,o setor mais dinâmico da economia nacional.

Além disso, a retomada da produção de bens de capital para fins industriais pode estar perdendo impulso.Em junho, havia sido 21,4% maior que a de um ano antes. Em julho, a diferença diminuiu para 13,3%, detalhe notado no Informe Conjuntural da CNI. Essa diferença para mais pode ainda parecer considerável, mas a base de comparação é muito baixa.

No conjunto, a aplicação de recursos em bens de capital, instalações e obras de infraestrutura continuará muito abaixo da necessária para um crescimento menos medíocre, se as projeções da CNI estiverem corretas.

Em 2011, a soma dos investimentos em capital fixo dos setores público e privado equivaleu a 19,3% do PIB. Em 2012, a proporção caiu para 18,1%. Neste ano, chegará a cerca de 19,1%, se o PIB crescer 2,4% e o investimento, 8%. A meta governamental, já modesta, é alcançar 24% do PIB, taxa obtida nos anos 70 e nunca repetida nas décadas seguintes.

Esse objetivo parece ainda muito distante.

Não há acordo, entre os economistas, quanto ao potencial de crescimento econômico do País. O cálculo é complicado, mas o conceito é importante, porque indica o ritmo de expansão sustentável sem novos desequilíbrios.

As avaliações mais sombrias indicam um limite na vizinhança de 2% ao ano. As estimativas mais otimistas ficam próximas de 4%. Nem na melhor hipótese, no entanto,a economia brasileira poderá crescer tanto quanto as mais dinâmicas da região-na faixa de 4% a 6% ao ano - sem acumular pressões inflacionárias e desarranjos nas contas externas. Poderá haver um arranque temporário, mas faltará fôlego para uma corrida prolongada.

Mesmo com o crescimento pífio dos últimos anos, o Brasil já acumulou problemas consideráveis.

A inflação continua elevada para os padrões internacionais e deve continuarem alta nos próximos meses, depois de um breve arrefecimento no meio do ano. O presidente do Banco Central (BC),Alexandre Tombini, reafirmou em Nova York, num encontro com investidores, o compromisso de continuar buscando a meta de 4,5%, mas ninguém pode dizer com alguma segurança quando a convergência ocorrerá. Um dos principais obstáculos, a farra das contas públicas, deve atrapalhar o combate à inflação ainda por um bom tempo.

Quem espera austeridade em tempo de eleição? Do lado externo, o cenário continua ruim. O BC reduziu de US$ 7 bilhões para US$ 2 bilhões o superávit comercial estimado para o ano. A CNI cortou sua projeção mais drasticamente- de US$ 9,2 bilhões no Informe Conjuntural de junho para US$ 1,76 bilhão no documento recém-divulgado. O BC manteve, no entanto, a previsão de um déficit em transações correntes de US$ 75 bilhões, equivalente a 3,35% do PIB. O investimento direto estrangeiro deverá chegar a 2,64% do PIB. Parte do buraco nas contas externas será coberta, portanto, por outras formas, em geral menos saudáveis, de financiamento.

Não há desastre à vista, até porque o País dispõe de mais de US$ 370 bilhões de reservas, mas a situação poderá ficar mais complicadas e a confiança no País cair acentuadamente.

O risco é tangível. O Cristo Redentor representado como um foguete em decolagem numa capa da revista The Economist de 2009 foi substituído, na última edição,por uma figura no rumo do desastre, depois de um voo descontrolado.

O desafio imediato, na agenda do governo, é atrair capitais privados para os grandes projetos federais de investimento.

Para isso a presidente e as principais figuras da equipe econômica foram a Nova York. O resultado será visto nas próximas licitações. Mas a presidente faria bem se pusesse no alto da agenda medidas para uma recuperação mais ampla da credibilidade- a começar por uma política fiscal mais séria e sem contabilidade criativa, já desmascarada em todo o mundo.

Os 60 anos da Petrobrás - ADRIANO PIRES


O ESTADÃO - 28/09

No dia 3 de outubro a Petrobrás completa 60 anos. No seu jubileu de diamante, dois fatos chamam a atenção. Durante os 45 anos em que exerceu o monopólio e nos últimos 15 anos, quando passou a conviver com o mercado aberto, a estatal nunca foi tão maltratada pelo governo, seu acionista majoritário. O segundo fato é a notável capacidade que a estatal adquiriu ao longo dos anos de desenvolver tecnologias de exploração em águas profundas, o que a fez se tornar e continuar a ser líder mundial.

Desde o início do governo PT, a Petrobrás tem sido usada e abusada pelo seu acionista majoritário com objetivos políticos, não permitindo decisões baseadas na racionalidade empresarial, o que tem causado imensos prejuízos aos acionistas minoritários, em particular aos trabalhadores que aplicaram seu FGTS na compra de ações da empresa. Exemplos não faltam. O governo obriga a empresa a manter os preços domésticos defasados em relação ao mercado internacional, com o objetivo de controlar a inflação e incentivar a atividade econômica. Desde 2003 a defasagem dos preços da gasolina e do diesel promoveu perdas de mais de R$ 40 bilhões. Em 2013 a estatal tem perdido algo em torno de R$ 1 bilhão mensal só com a importação de gasolina e diesel. Paralelamente, o crescimento da demanda incentivado pelo preço artificialmente baixo levou a empresa a importar grandes volumes de gasolina e diesel. Entre o 1.º trimestre de 2010 e o 2.º trimestre de 2013, a área de abastecimento da Petrobrás já acumula prejuízo de cerca de R$ 36 bilhões, e as importações de gasolina cresceram 395%. Por causa disso, a empresa tem tido dificuldade para cumprir seus cronogramas de investimento. O resultado tem sido o atraso e a revisão de vários projetos e a queda na produção da empresa, que em 2013 deve ser de 2%, voltando aos níveis observados em 2009. Três anos perdidos.

Outro caso emblemático é a construção da Refinaria Abreu e Lima (Rnest), em Pernambuco, refletindo problemas relativos à gestão de projetos de construção de refinarias pela Petrobrás. Ao longo da construção, o custo previsto do projeto se multiplicou por dez, de US$ 2,3 bilhões para US$ 20,1 bilhões, e a sócia venezuelana PDVSA até agora não deu o ar da sua graça. Isso sem falar na compra da refinaria de Pasadena, nos EUA, por um preço ainda não explicado de forma transparente.

Como resultado de todos esses desmandos, a lucratividade da empresa desabou, levando ao aumento do seu endividamento. Apesar de em 2010 ter realizado a maior capitalização da história, que gerou a injeção de R$ 45 bilhões em seu caixa, a empresa está hoje perigosamente perto dos níveis que fariam com que perdesse seu status de investment grade. O seu endividamento cresceu 210% após a capitalização e suas relações dívida líquida/Ebtida e dívida líquida/capital líquido se encontram em 2,9x e 34%, respectivamente, mesmo com a empresa se utilizando de "contabilidade criativa", que reduziu 70% do impacto da desvalorização cambial sobre a sua dívida. Agora a saída encontrada é o plano de desinvestimento, pelo qual a empresa está vendendo ativos como metade dos campos de petróleo que possuía na África. O próximo passo poderá ser a promoção de uma nova capitalização após as eleições de outubro de 2014, o que provocará uma diluição maior dos minoritários, aprofundando o movimento de estatização da empresa. Tudo isso compromete o futuro da Petrobrás.

Nos próximos aniversários, é preciso que comemoremos a volta da Petrobrás ao caminho da excelência e da lucratividade e, para que isso aconteça, o acionista majoritário deve deixar de ser inimigo e passar a ter um novo relacionamento com a empresa. Esse novo relacionamento tem de estar baseado no respeito pelo acionista minoritário, no retorno do planejamento de longo prazo e no abandono do atual intervencionismo de curtíssimo prazo, que vem causando enormes prejuízos à empresa e a toda a sociedade brasileira. Só assim a Petrobrás poderá manter-se na vanguarda tecnológica, beneficiando as gerações futuras de brasileiros.

A adúltera, por Pondé

18/08/2013 03h58
LUIZ FELIPE PONDÉ
RESUMO A série em que a "Ilustríssima" adianta os principais lançamentos do ano apresenta trecho de "A Filosofia da Adúltera", reunião de ensaios do colunista da Folha Luiz Felipe Pondé inspirados em Nelson Rodrigues. O texto a seguir enfoca, a partir da peça "Perdoa-me por Me Traíres", o embate entre culpa, pecado e desejo.
*
"Não se abandona uma adúltera."
Nelson Rodrigues, em "Perdoa-Me Por Me Traíres"
Já disse várias vezes que o segredo do mundo se encontra entre as pernas das mulheres. Claro, exagero. Mas nem tanto assim.
Para quem gosta de mulher, parte da vida se resume aos seus movimentos pélvicos e sua saliva. E seus tédios. Mas, ainda assim, se visitarmos a mais radical visão evolucionária da pré-história humana, veremos que grande parte da vida em bando, seus afetos (base da relação entre moral e religião, porque base fisiológica e psicológica de ambas), suas guerras, suas festas e protoinstituições encontram sua ancestralidade funcional no calor úmido entre as pernas das mulheres.
O afeto feminino é úmido e quente. No entanto, para mim, esse fundamento científico pouco importa; não faço ciência aqui e quase nunca.
Onde nascem os famosos sistemas de parentesco, de que falam os antropólogos, se não entre as pernas das mulheres? Dirão que sou sexista, porque, afinal, as mulheres não geram parentesco por elas mesmas, mas com os homens. Pode ser; mas os homens pouco me importam, talvez porque desde muito cedo percebi que as mulheres são deliciosas e cheirosas, e tudo que penso nasce de sensações.
Desejo é escravidão, e temperamento é destino. Como diria o cético escocês David Hume no século 18, "knowledge is feelling" (conhecimento é sentimento). Com o tempo, o temperamento se transforma em caráter. Faço filosofia sobre o que está entre as pernas das mulheres porque gosto de estar entre as pernas das mulheres, e não por alguma razão histórica defensável, apesar de que, como disse acima acerca da teoria evolucionária, acho possível sustentar minha máxima de que "o segredo do mundo se encontra entre as pernas das mulheres" com alguma cientificidade, apesar de desprezar esse tipo de fundamentação.
Minha simpatia pelo darwinismo é, antes de tudo, devida ao seu caráter dramático, e não ao científico. Ou melhor, seu caráter estético. O fato de ele ser científico, para mim, apenas aprofunda sua natureza operística.
Posso me perder imaginando uma bela mulher que pertence a outro homem, de joelhos, sendo uma amante infiel. Pedindo pelo amor de Deus para não levá-la a fazer o que ela quer, mas sentindo-se culpada por querer. Talvez chore e trema, como de costume, quando a culpa segue sua fisiologia.
A culpa e o pecado são os maiores aliados do desejo que existem, e nesse sentido Nelson está muito além da estupidez contemporânea que pensa, erroneamente, que "sexo livre" dá tesão. É da natureza feminina desejar o que "dói".
E também, como dizia Nelson, a prostituta não é a primeira profissão do mundo, mas a sua vocação mais antiga. E essa vocação é a de desejar ser objeto do homem que a possui, seu dono (mesmo que simbolicamente e por algum tempo). Mas essa vocação não significa ausência de sofrimento ou de contradição: pelo contrário. É a contradição que a deixa tão desejável em sua incapacidade de controlar seu ímpeto de infidelidade. E se tornar uma adúltera.
SEGREDO
Essa contradição assume a forma de suor líquido, gosto, cheiro, gesto, gemidos, restos, enfim, tudo aquilo que constitui o segredo da vida entre as pernas das mulheres. E o desejo escorre pelas pernas. A adúltera revela o fracasso de toda moral porque a interdição apaixona. Tornar-se objeto, coisa que se deixa mandar.
Mas a adúltera na obra de Nelson é mais do que isso. Ela é um de seus arquétipos essenciais para representar a condição humana.
Aliás, Nelson também via as mulheres como objeto intenso de desejo e reflexão. Não é por acaso que, quando Nelson fala de suicídios, homicídios e enterros, diz que, quando o morto era uma mulher, tudo era mais dramático, interessante e intenso para ele. Suspeito de que uma das razões para esse fato é ser ele um heterossexual e, por isso mesmo,alguém que via parte do mundo e da vida mediado pelo que há entre as pernas das mulheres.
Sexo é destino, apesar de alguns quererem brincar dizendo que não, porque querem ter o sexo do outro. Mas, ainda assim, é o sexo que é destino; nesse caso, o sexo errado.
Pensar através da adúltera é, antes de tudo, uma confissão de desejo pela mulher na sua condição de filha de Eva, aquela primeira infiel.
Os ensaios deste livro foram escritos sob o signo da adúltera: são as confissões de um desgraçado que luta constantemente para não se perder no próprio desejo e em suas inconsistências. A filosofia selvagem brota desse combate e do medo que me acompanha o tempo todo.
Por que não se abandona uma adúltera?
Em "Perdoa-me por Me Traíres", o marido, que afirma que não se abandona uma adúltera, representa a clássica posição de Nelson de que sexo demais é falta de amor. A tese supõe que a mulher trai porque não é amada. Será verdade? Acho que não. Essa hipótese de Nelson fala de sua idealização do amor.
Ela, a adúltera, seria vítima, e não culpada, por isso o marido pede perdão a ela por ela o ter traído, invertendo a lógica da frase.
Não há dúvida de que, para Nelson, somos seres capturados numa armadilha interior: desejamos um amor ideal, mas ele não existe. Como não existe, caímos em desgraça inevitavelmente, e daí decorre tudo o mais.
Uma das piores formas dessa idealização do amor é seu mal infinito: queremos sempre mais e, quanto mais queremos, mais dependentes e inseguros ficamos. Ciúmes, delírios de traição, impotência de controlar o outro. Por isso, a adúltera representa o necessário fracasso de um animal atormentado por um desejo de amor sempre impossível. O pecado moral nasce dessa vontade esmagada.
Não importa o que você fizer: quanto mais amar, menos "bem resolvido" será. Mas a indiferença apodrece. Por conta disso, sem o tormento do amor, você apodrece -por isso só os neuróticos verão a Deus. Ou nos angustiamos ou apodrecemos, dizia Nelson.
O amor só se resolve quando morre ou quando vira amizade. Esse núcleo básico, que é dramático em sentido dramatúrgico e dramático nos sentidos filosófico e psicológico (porque descreve uma natureza humana em contínuo conflito consigo mesma, o que aproxima Nelson de Freud), inviabiliza qualquer noção de afetos corretos.
Nossa era, tomada pela crença idiota na solução política e ideológica de tudo, parece não entender esta aporia -doença que ele identificou no Brasil nos final dos anos 1960 e, por isso, dentre outras razões, foi chamado de reacionário. Há uma desordem afetiva no ser humano que todo mundo experimenta e, por isso, é necessário mentir, muitas vezes como ato de misericórdia. "Mintam, pelo amor de Deus", porque a verdade é insuportável.
O autoconhecimento é uma forma de tormento. A tradição espiritual cristã é marcada pela consciência de que conhecer a si mesmo é, antes de tudo, um ato de autoimolação. Nossa fragilidade ontológica pede a mentira como modo de sociabilidade e sensibilidade pedagógica.
Mas o que no plano da convivência é uma necessidade, no plano do pensamento é uma traição, por isso Nelson se dizia ex-covarde. Há que dizer a verdade, pelo menos como forma de reconhecimento de nossa miséria e abandono.
Já em sua infância, Nelson conheceu uma adúltera. Uma vizinha. Conta ele como a viu num desfile de Carnaval ao lado do marido traído. Dois infelizes. O rosto dela carregava a marca do fracasso e da vergonha. Linda como uma morta. O rosto dele trazia o peso do homem que não consegue deixar de amar sua adúltera, e que também é punido por todos.
Noutro relato, Nelson conta como uma jovem belíssima e recém-casada foi chamada à casa de um vizinho milionário, mais velho, que tenta seduzi-la com um colar de pérolas. Ela recusa, ofendida, e reafirma sua fidelidade ao marido.
Quando o marido chega em casa, ela conta a ele o ocorrido. Ele, pra surpresa da infeliz, condena seu ato ingênuo de fidelidade e diz a ela que não se recusa um colar de pérolas assim. As vizinhas todas concordam com ele.
Ela, então, volta à casa do milionário e traz o colar de pérolas, e o joga na cara do marido, que fica paralisado. As vizinhas todas, com a certeza tranquila do bando, gritam: "Cachorra, adúltera".
   

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Aprender a política como festa - RENATO JANINE RIBEIRO


VALOR ECONÔMICO - 23/09
Um prefeito que tenha imaginação bem poderia entender que junho de 2013 deu uma grande lição aos governantes, e adotar uma medida inteligente: abrir, dois dias por ano, o espaço público para grandes manifestações políticas. Com data marcada, mas organizadas por entidades independentes ou, mesmo, não organizadas, só com algumas regras básicas de civilidade. Seria uma forma de dar vazão, propriamente política, a tudo o que é protesto ou projeto. Seria uma forma de aprendermos a traduzir em linguagem política nossos descontentamentos ou anseios. Seria uma forma de ocupar o espaço público, geralmente utilitário, como festa. Seria uma forma de aprendermos a fazer política como um espaço de prazer, de alegria - repito: de festa.

Porque este foi um dos lados das recentes manifestações. Em meio a dias de violência de manifestantes (numa primeira fase, mas sempre lembrando que a grande maioria deles foi comedida), um ou mais dias de violência policial (o fatídico 13 de junho, em São Paulo) e dias de violência contra prédios e militantes, houve a grande manifestação, absolutamente pacífica, também na capital paulista, do Largo da Batata. E outras, em outras cidades. A sensação de quem esteve é exultante. Os participantes a descrevem em linguagem que me levou a falar em epifania, em revelação. (Curiosamente, os amigos do Rede Sustentabilidade não gostam do termo; mas eu o mantenho). Porque se manifestava, a seus cinco sentidos, uma apropriação das ruas e avenidas pelo cidadão, melhor ainda, pelo ser humano; lá onde passam carros, ônibus e caminhões, lá onde há regras rígidas de circulação, lá onde a morte ronda constantemente sob a forma de atropelamentos e colisões, triunfou brevemente a lentidão do andar, o prazer do flanar, a alegria do encontrar.

Foram algumas janelas de vida feliz num mês ou dois que conheceram momentos de violência inaceitáveis. Para muitas pessoas, esse tipo de manifestação, que começa com o 1968 francês e irrompe de vez em quando mundo afora, sem causa determinada ou visível, deixa como único legado a festa. Pode ser pouco. Eu, pessoalmente, acho que só isso é pouco: quem bota o mundo de cabeça para baixo não deveria voltar, rápido demais, à rotina. Um carnaval pode fazer vislumbrar que outra experiência de vida pode existir. Mas é este momento "happening" que propicia a revelação. Se muitos apenas se divertem - se alguns até vivem esse dia como uma balada um pouco diferente - outros podem perceber, aí, que dá para reivindicar juntos. E isto é uma das coisas de que o Brasil mais precisa.

Porque nosso hábito é o da queixa individual, que nem chega a ser reclamação. Uma vez, quando um avião que seguia para São Paulo atrasou a ponto de ficar claro que pousaríamos em Guarulhos e não em Congonhas, vi uma fila de passageiros se queixar no balcão da companhia, mas sem unirem as vozes. Vários insultaram os funcionários - e depois, mansos, embarcaram para o aeroporto indesejado. Poucos anos depois, porém, outra experiência redimiu a primeira: vi uma moça reunir cinco ou seis dos passageiros, reclamar delicada mas firmemente com a companhia - e conseguir de volta a aeronave que estava sendo desviada para outro destino. A diferença está numa única palavra: organização. Incluí o depoimento dela, a médica Claudia Coutinho, no programa "A liberdade de organização", que fiz para a TV Futura.

Pode a organização nascer de uma festa? Pode. É preciso unir reclamações. Mas é necessário, sobretudo, sabermos que reclamações dão resultado, desde que feitas em conjunto. Quem se reúne tem mais êxito do que quem se divide. Nossa sociedade é individualista demais. Saber se unir é, para nós, prioridade. Nunca venceremos a corrupção enquistada nos castelos políticos se não desenharmos unidades alternativas a eles.

Agora, organizar em tom de festa é bom. É algo que o Brasil sabe fazer. Sempre se comenta que o carnaval, nossa festa com mais ares de bagunça, é na verdade um prodígio de organização. E no futebol, o esporte mais querido, o esporte que identificamos com a nacionalidade, os jogos começam na hora certa, sem atraso. Dá para misturar alegria e organização. Aliás, se pusermos alegria no convívio, no estar-juntos, teremos maior eficiência, que depende de sermos organizados. E, para completar, lembremos que os norte-americanos dizem "Let us get organized", Vamos nos organizar, quando querem dizer: este problema não pode ser resolvido por pessoas sozinhas, então nos juntaremos para enfrentá-lo.

Volto ao prefeito com imaginação. Uma festa das reivindicações, em que grupos grandes e sobretudo pequenos, até mesmo indivíduos, exponham suas críticas e propostas, ocupando avenidas ou praças da cidade - de qualquer cidade -, pode ser a ocasião de dar voz aos mil pequenos descontentamentos que nos acostumamos a calar. Dia a dia, engolimos frustrações com a baixa qualidade de nossa vida pública, de nossos serviços públicos. Não falar já é ruim. Não ver saída para problemas cruciais só agrava uma sorte de melancolia política que é nossa constante, com raros intervalos de euforia. Nós nos resignamos a muitos problemas, que achamos não terem como sair da vida pessoal e privada - e que são deprimentes. Mas eles podem ser enfrentados e até resolvidos, se soubermos transpô-los para a vida pública e política. É a esperança que o Brasil precisa construir: sair da passividade que nos isola a todos, para uma posição ativa que só existirá na cooperação de muitos. Esta proposta pode parecer ingênua e talvez o seja. Mas indica que podemos ter alegria numa política decente.

Não queremos saúde padrão Fifa - FRANCISCO BALESTRIN


Correio Braziliense - 23/09

Nos últimos meses, a população criou coragem e foi para as ruas exigir educação, uma política mais transparente e, principalmente, melhores condições de saúde. O descontentamento veio à tona especialmente com os altos investimentos para a Copa do Mundo de 2014, frente às mazelas do país. Entre as reivindicações, a saúde com padrão Fifa é um dos principais discursos. Mas a verdade é que não precisamos de saúde padrão Fifa, com investimentos estrondosos e construções exageradas, mas sim de uma saúde padrão Brasil, que atenda as necessidades da população.

O sistema público de saúde já possui grandes hospitais e o Brasil é o único país dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) com um modelo de saúde pública que é bastante elogiado, mas peca na execução. O setor privado, por sua vez, possui uma gestão bastante eficiente, mas não tem modelo definido. Os serviços de saúde precisam, de fato, melhorar; no entanto, investimentos desnecessários não resolverão os problemas de gestão da saúde no país.

A saúde precisa ser vista pelos governantes como um bem maior, que necessita de investimentos na mesma proporção de se implantar uma gestão inteligente. Mas não vemos isso na prática. Uma breve análise comparativa entre os gastos com a Copa do Mundo e os investimentos previstos para a saúde demonstra o quanto essa área vital carece de atenção no país. O objetivo desta reflexão não é criticar os gastos com a Copa, mas mostrar a ineficiência da gestão pública e a inversão de valores dos governantes.

Os investimentos previstos para a Copa são da ordem de R$ 26 bilhões. Obviamente, se acompanharmos os noticiários, perceberemos que esse valor foi ultrapassado em muito. Apenas os seis estádios utilizados na Copa das Confederações, por exemplo, custaram 65% mais que o previsto em 2010.

Enquanto isso, entre 2007 e 2012, o Brasil perdeu 11,2% dos leitos privados do país, o que corresponde a 18.322 leitos. No mesmo período, mais de 280 hospitais privados foram fechados. Nesse sentido, é importante lembrar que 64% dos leitos disponíveis pertencem aos hospitais privados e mais de 57% desses leitos atendem ao Sistema Único de Saúde (SUS), o que sobrecarrega ainda mais o setor. Além disso, o número de beneficiários de planos privados é crescente, alcançando 47,9 milhões de favorecidos, um crescimento de 2,1% em 2012.

Ao analisarmos os investimentos para a Copa do Mundo de 2014, verificamos que apenas com a construção e reforma de 12 estádios estão previstos gastos de mais de R$ 7 bilhões. Em nota técnica publicada pela Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), se considerarmos o crescimento médio de beneficiários de 2,1% ao ano, o segmento hospitalar privado precisará criar 13,7 mil novos leitos até 2016, sem considerar o deficit atual de leitos. Esse número equivale ao investimento de R$ 4,3 bilhões, ou seja, valor muito inferior ao gasto com os estádios. O setor público seguramente deve apresentar números maiores.

Os gastos com saúde no Brasil representam 9% do Produto Interno Bruto (PIB), o equivalente a R$ 396,7 bilhões, sendo a maior parte (57%) de origem privada, tanto por meio de planos de saúde quanto por gastos diretos dos cidadãos brasileiros. O governo federal destinou algo em torno de R$ 96 bilhões para a saúde em 2012, mas há notícias de que mais de R$ 9 bilhões deixaram de ser investidos. Esse recurso é quase equivalente ao total de gastos com internações do SUS no mesmo ano (R$ 11,6 bilhões). Com a disponibilidade e utilização adequada desse montante, poderíamos aumentar em mais de 90% os recursos para internação no sistema público de saúde.

Como parte de um pacto pela melhoria dos serviços públicos, a presidente Dilma apresentou algumas propostas, contemplando o combate à corrupção e a melhoria do atendimento à população nas áreas de saúde, educação e transporte público. O curioso é que, ao mesmo tempo em que o governo promete melhorar as condições dos serviços públicos no país, ele também se compromete a reduzir gastos e a atingir a meta de superavit, de 2,3%. O que nos resta saber é de onde esses gastos serão cortados.

Para a saúde, por exemplo, apesar de importantes, as alternativas propostas não solucionam um dos principais problemas do setor público — o de gestão do sistema. De nada adiantam novos hospitais e unidades básicas, se não houver qualidade e segurança na prestação dos serviços.

Aliás, atendimento de qualidade é direito do cidadão e deve ser entendido como essencial à condição humana. O sistema privado de saúde também deve resgatar sua condição existencial, voltando a ser opção do usuário e não condição para receber os cuidados de saúde que deveriam ser ofertados pelo SUS. Portanto, a gestão competente do sistema público é fundamental nesse processo, pois a ineficiência da saúde pública sobrecarrega e prejudica o todo.

Os contrapontos desse artigo mostram a urgência de investimentos para a saúde e, principalmente, a necessidade de uma gestão mais adequada do dinheiro público, requisito fundamental para o desenvolvimento do país.