quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Capital afetivo, HUMBERTO WERNECK - O Estado de S.Paulo

Capital afetivo

25 de agosto de 2013 | 2h 16


A esta altura dos acontecimentos, devo admitir que ainda não achei resposta para a pergunta com que o Caetano foi ao ponto: existirmos, a que será que se destina? Seremos, como dizia no fim o Cazuza, cobaias de Deus? Se você me permite a filosofada, desconfio que o sentido da vida se resume ao inconsequente prosseguimento da espécie, nessa absurda correia transportadora em cujo termo nos espera a queda no vazio. Resta saber o que faremos enquanto estamos por aqui. Se aceita sugestão, aqui vai esta: o melhor investimento é nos afetos.
Nada impede que a gente faça amigos até o último dia, mesmo como esforço de reposição, e espero que seja assim comigo. Alguns anos atrás, para comemorar uma idade redonda, dei uma festança, e me lembro da alegria que saboreei quando, ao descer uns degraus rumo ao espaço onde estava o povaréu, me bateu essa constatação: o que costurava aquelas 200 pessoas - muitas das quais nem se conheciam -, numa inédita e irrepetível configuração, era o afeto que me ligava a cada uma delas.
E não se tratava, benza Deus, de passageiros apenas do vagão de 1945, aquele em que desembarquei no mundo; ao contrário, estacionara ali uma composição de variadas gerações, dos 80 anos aos menos de 20. Foi gratificante me dar conta de que venho resistindo bem à tentação, reforçada pelo envelhecimento, de me refugiar nostalgicamente no vagão de origem. Bom saber que posso transitar por todos os demais até que chegue à estação final.
Lá estavam, claro, vindos de diversas partes, amores meus também chegados em 1945 e imediações; os "amigos fundamentais" a quem dediquei um livro e que me empenho em cultivar. Pois não é pouca coisa uma amizade capaz de atravessar, nem digo décadas, mas tantas solicitações à dispersão. É fácil ser amigo enquanto impera o socialismo da juventude, essa companheiragem - os mesmos sonhos, os mesmos gostos, o mesmo dinheiro curto - que nos mantém mancomunados até por volta dos 30, 30 e poucos anos, quando uma diáspora nos espalha por destinos nem sempre coincidentes e não raro inconciliáveis. É duro admitir, mas há em nossos corações (ou será no fígado?) um quarto de despejo para descarte de afetos vencidos.
Cada safra de amizades tem sua marca, mas só as mais antigas ostentam o privilégio de haverem compartilhado descobertas primordiais. Só na extrema juventude você tem direito de anunciar a seus parceiros, sem risco de ridículo, que descobriu um tal de Dostoievski, um tal de Brahms, um tal de Cézanne. Ou mesmo um tal de... não, não vou dizer o nome do romancista em questão. Mas entrego a cena cômica.
Ali pelos nossos 20 anos, um de meus comparsas literários, cujo nome também devo omitir, me apareceu um dia, exultante, com um livro nas mãos. Eu tinha que ler aquilo, tinha!, urgia ele, enfático. Bom assim?, perguntei, descrente de que por trás daquele título e daquela capa, ambos medonhos, pudesse haver o que se aproveitasse. Não - concedeu ele, antes de proferir essa maravilha: "É ruim, mas importante!". Pra quê! Estava criada em nossa roda, para todo o sempre, a categoria do ruim-mas-importante.
Mas convém ir devagar nos julgamentos, pessoais e literários inclusive. Era menino quando minha mãe me aplicou o Coração, do italiano Edmundo De Amicis, centenária coletânea de histórias que li e reli apaixonadamente, mas que no final da adolescência, sentindo-me não só homem feito como senhor de insubornável senso crítico, condenei à estante da subliteratura lacrimogênea. Já me aproximava dos 30 anos quando reencontrei o mesmo exemplar de Coração, que me pus a folhear, enquanto contava à amiga que me acompanhava: "Imagina que eu lia isso e chorava...". Abri o livro ao acaso e comecei a ler, em tom de mofa, a história do pequeno vigia lombardo, até que a voz engasgou e os olhos, como antigamente, boiaram em lágrimas.
(Epa, eu falava de amizade, enveredei pelas letras, cheguei às lágrimas... Espero que você perdoe o desconchavo. Amigo não é pra essas coisas?)

domingo, 25 de agosto de 2013

“Relatório da comissão da verdade tem que ser feito com participação das vítimas”


A advogada criminalista Rosa Maria Cardoso deve deixar nesta semana o cargo de coordenadora da Comissão Nacional da Verdade. Será substituída pelo também criminalista José Carlos Dias. Em entrevista ao Estado, para um balanço dos três meses em que esteve na coordenação do grupo, Rosa Maria relatou que alterou o ritmo e o rumo dos trabalhos. Entre outras coisas, abriu espaço e deu mais voz para os grupos de ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos, reduziu o número de sessões fechadas para o público, nomeou um novo secretário executivo e instituiu atas para as reuniões.
Paralelamente, ela apoiou manifestações favoráveis à reinterpretação da Lei da Anistia, oferecendo combustível a uma campanha cujo objetivo é abrir caminho para que agentes públicos que violaram direitos humanos nos anos da ditadura sejam julgados e punidos. Na avaliação dela, esse debate é irreversível e constitui a principal causa de atrito que persiste entre a comissão e as Forças Armadas.
A seguir, os principais trechos da conversa com a advogada.
A senhora ampliou o espaço de vítimas e de familiares na comissão. Qual foi sua intenção?
A comissão é a chance que eles têm de ver a sua história contada. Se não houver uma participação efetiva dos interessados, o rumo do trabalho e o relatório final será diferente do que eles querem.
E o que eles querem?
Não querem o relatório de um historiador. Querem a história contada por eles. No mundo inteiro tem sido assim: os relatórios de comissões da verdade são sempre a história de graves violações de direitos humanos. Foi por isso que ampliei o número de pessoas que sentam à mesa de reuniões, que tornei as sessões mais abertas, que abri novas possibilidades de vítimas e familiares participarem das investigações. Dos 76 depoimentos tomados enquanto fui coordenadora, 72 foram em atos ou audiências públicas. Essa média é maior do que a registrada nos meses anteriores.
A senhora anunciou que vai contratar novos assessores. O quadro atual, com 18 assessores diretos, além de colaboradores indiretos, num total de quase 70 pessoas, não é suficiente?
Uma comissão da verdade em um país do tamanho do Brasil deve ter um número maior de pesquisadores e assessores diretos. A ONU indica em torno de 250 para esse tipo de atividade. A comissão tem um mandato, que é curto, e precisa percorrer, pesquisar, buscar pistas numa quantidade enorme de documentos reunidos no Arquivo Nacional. Também precisa analisar arquivos nas seções estaduais do Dops e todo o material produzido pela Comissão da Anistia, que documentou 70 mil casos no País.
Quantas pessoas devem ser contratadas?
Preparei os documentos e as condições para a contratação de 100 pesquisadores e 20 consultores. Vão trabalhar por um tempo limitado de seis meses. É importante fazer isso agora, porque vamos começar a preparar o relatório final. A primeira reunião para discutir visões preliminares do relatório final está marcada para o início de setembro.
As vítimas e familiares devem participar da elaboração do relatório final?
As pessoas estão cobrando que seja dessa forma e eu acho que o caminho não tem retorno. Não podemos produzir um relatório que depois seja questionado pelas vítimas e familiares.
Não seria melhor um grupo mais especializado e reduzido?
Acho que não. As vítimas, os familiares, os militantes de comitês de direitos humanos, estudantes, as comissões estaduais da verdade, os grupos de apoio, todos têm suas concepções sobre como deve ser o trabalho, todos têm informações e condições de participar. A teoria não está toda contida na universidade. Tem familiar de morto e desaparecido que conhece muito bem os arquivos já existentes e sabe identificar rapidamente o que é novidade e o que não é.
Acha que antes da senhora assumir a coordenação a visão da comissão era mais acadêmica?
Tendia a ser. Acho que o relatório final merece uma composição a muitas mãos, com gente da academia, jornalistas informados sobre o tema, militantes.
A comissão tem sete integrantes mas está atuando apenas com cinco, porque a presidente Dilma Rousseff não nomeou os substitutos dos dois membros que pediram demissão. Isso não atrapalha?
É muito ruim. Se tivesse com mais gente, a comissão poderia ter viajado mais. Ainda demos pouca atenção às regiões Norte e Nordeste.
A senhora sabe o motivo da demora nas nomeações?
Não. Eu penso que ela ficou muito envolvida com as manifestações de junho e, depois, com a visita do papa. Agora imagino que ela está dando um tempo para a evolução política, para ver como a comissão resolve seus problemas, a nossa capacidade de formular alternativas.
Como vê o seu sucessor, o advogado José Carlos Dias?
Temos uma larga convivência, porque fomos advogados de presos políticos juntos. Agora ele tem uma diferença comigo e em relação a outros membros da comissão, que é o fato de ser contrário à reinterpretação da Lei da Anistia.
Isso causaria alguma resistência a ele na comissão?
Nenhuma. Os outros membros se dão muito bem com ele. Não há nenhum confronto. Ele é uma pessoa polida, educada, equilibrada. Não é um destemperado.
E quanto às vítimas e familiares? O que acham dele?
A luta pela reinterpretação da Lei da Anistia está ganhando força e não sei como isso vai ficar. Antes o debate não estava colocado com a força que tem agora. A Ordem dos Advogados está discutindo o assunto no Brasil inteiro.
A relação com as Forças Armadas ainda parece delicada. Dias atrás, ao comunicar a morte do major-brigadeiro Rui Moreira Lima, herói da 2.ª Guerra Mundial, a Aeronáutica omitiu que se opôs ao golpe militar e que colaborou com a comissão.
A relação é  é completamente delicada. Eles têm o realismo de compreender que esse assunto está fora do controle político. Não temos mais a possibilidade de um decreto que proíba, por exemplo, o debate sobre a reinterpretação da Lei da Anistia. Na verdade eles jamais acreditaram que a comissão fosse uma forma de estancar o debate. Uma minoria compreendeu logo que havia uma imposição internacional no sentido de que houvesse uma comissão da verdade, destinada a restabelecer a história. Nas Forças Armadas também há muita gente capaz de compreender que no caso de alguém que agrediu seu filho, arrancou um pedaço dele, é justo que seja submetido a Justiça.
A senhora já deixou claro que é favorável à judicialização.
A judicialização de violações não prescritas legalmente é uma solução civilizada. O que não é civilizado é a justiça com as próprias mãos. Todas as sociedades civilizadas entenderam que problemas dessa natureza têm que ser submetidos à Justiça. A impunidade não pode ser a regra, porque acaba funcionando como estímulo à repetição. A judicialização não é uma atitude raivosa, agressiva, violenta. É claro que os militares de uma geração próxima ou diretamente envolvida com os fatos não veem com bons olhos o funcionamento de uma comissão da verdade. Só se fosse uma comissão interessada em contar a história de uma forma acadêmica.
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Patagônia, uma loja de roupas diferente


Saiba mais sobre a loja que faz de tudo para seus clientes consumirem menos e é um sucesso

Vemos em todos os lugares o termo reciclagem de plástico e papéis, mas e quanto às roupas, será possível reciclá-las também? E será que essa é a melhor solução para poupar o planeta? Muita gente não sabe, mas a reciclagem é o último passo que devemos tomar com aquilo que consumimos. Ela é importantíssima, mas não é a única solução para o descarte daquilo que não queremos mais. O pontapé inicial está na redução do consumo. Cada roupa, alimento ou objeto que compramos deixou sua emissão de carbono no planeta. Por isso, se adquirirmos apenas o que realmente precisamos, fazemos a nossa parte por um planeta mais saudável. Esse é o conceito que a marca de roupas Patagônia quer passar para os seus clientes.
Não comprar nada além do que falta e usar a peça de roupa por vários anos é a principal ideia- propagada. A marca desenvolveu peças duráveis que servem para uma vida toda. Reparos são ótimos para não deixar as roupas envelhecerem, por isso, a Patagônia trabalha com uma equipe de consertos formada pelos moradores da região e devolvem a roupa em 10 dias úteis. Os reparos de uso são cobrados com preços acessíveis e viáveis para o consumidor.
Nada que ainda seja possível de se usar deve ir para o lixo. Peças em bom estado devem permanecer em circulação. Doar as roupas é a solução para não desperdiçar algumas peças antigas e lojas de segunda mão também é uma boa opção para quem pretende esvaziar o armário e ganhar uns trocados. As lojas da Patagônia têm parceria com o site eBay e, no próprio website da empresa, podemos tanto vender quanto comprar roupas usadas. A empresa também doa parte dos seus estoques para instituições de caridade.
Na natureza não há desperdícios, tudo o que morre contribui para enriquecer o solo e alimentar novas espécies. A Patagônia usa esse princípio em sua produção. Se o consumidor não quiser mais uma roupa, ele pode entrar em contato com a loja e doar a peça para reciclagem. A empresa extrai as fibras do pano e confecciona novas peças. Desde 2005, a loja já arrecadou 45 toneladas de roupas usadas e reciclou 34 toneladas desse material. A loja Patagônia, apesar do nome, não é argentina e sim norte-americana. Sua política de redução, reúso, reparo e reciclagem é um novo horizonte para aqueles que acreditam em sustentabilidade num país que chega a produzir 11,9 toneladas de roupas e sapatos descartados incorretamente.

Outro gigante acordou - GUSTAVO FRANCO


O Estado de S.Paulo - 25/08

Como se não bastasse o que despertou em junho de 2013, e transformou a Copa das Confederações numa espécie de maio de 1968, há outro gigante acordado, na verdade dois deles.

O gigante americano parecia prostrado desde a crise de 2008, mas contrariando muitos prognósticos, e depois de muito esforço para arrumar a casa, a recuperação americana vem provocando um banho de sangue nas moedas, títulos públicos e commodities, especialmente em mercados emergentes. Trata-se apenas de uma reação inicial, talvez exagerada, talvez modesta, não há como dizer, à normalização da política monetária americana; um exemplo extraordinário da máxima segundo a qual, nos mercados financeiros, boas notícias são sempre más notícias para muita gente.

Firmou-se a sensação de que há uma data para acabar a abundância de liquidez de que se beneficiou amplamente o Brasil nos últimos anos. Tolamente, confrontamos as políticas do Fed (banco central dos Estados Unidos) com a tese da "guerra cambial", um raciocínio conspiratório segundo o qual os americanos estavam desvalorizando deliberadamente a sua moeda para ficarem mais competitivos do que nós. Como se eles precisassem disso! Curioso que no botequim em Havana, Caracas ou Campinas, onde essa gracinha foi inventada, nada semelhante fosse dito sobre a China, que o Brasil trata generosamente como uma "economia de mercado".

Nosso ministro da Fazenda chegou a apresentar slides em inglês onde mostrava a desvalorização da moeda nacional, que ele agora quer evitar, ilustrada pelo título "Ganhando a guerra cambial". Mario Henrique Simonsen tinha uma regra de ouro a esse respeito: jamais falar mal do Brasil em inglês.

O fato é que tivemos muito de uma coisa boa durante vários anos, e não aproveitamos esse bom momento para fazer reformas e desenvolver a nossa competitividade. A produtividade da economia brasileira está estagnada; como demonstra o trabalho do professor Regis Bonelli, o valor adicionado por trabalhador no Brasil em 2012 permanece no mesmo nível de 2000 e equivalente a 19% da produtividade americana. Sim, o trabalhador americano produz cinco vezes mais que o brasileiro por hora trabalhada, e não retiramos um centímetro do atraso nesses 12 anos. Pior, recuamos em alguns indicadores de ambiente de negócios, qualidade da infraestrutura e liberdade econômica.

A teoria de que o câmbio mais desvalorizado resolve o problema da falta de reformas politicamente complexas é, para usar palavras presidenciais, primitiva. O câmbio não tapa buracos nas estradas, nem diminui filas nos portos e aeroportos ou interfere no que se passa dentro da fábrica.

O câmbio é flutuante, como se sabe, o que é outra maneira de dizer que é efêmero, portanto algo do qual não se deve depender. Quem trabalha com câmbio se acostumou a proteger-se das flutuações de curto prazo e olhar os fundamentos, vale dizer, para o conjunto de fatores que compõem a real competitividade de um empreendimento.

Como as autoridades não trabalharam nesses temas associados ao que se chamava antigamente de "custo Brasil", em boa medida por que entendiam que esta era uma agenda neoliberal, ficamos para trás em todos esses temas. Concentrou-se a atenção nos programas sociais, mas a competitividade foi esquecida. Uma coisa não exclui a outra, como tardiamente parecem perceber as autoridades.

Mas o fato é que, além dos ianques, e diante do acima exposto, outro gigante acordou, um personagem sinistro e muito temido: o mercado, ou para ser mais preciso, o mau humor do mercado, perto do qual os "black blocs" são meninos de igreja. As autoridades sabem como é assustador quando se formam as manadas, os ataques especulativos, sem controle e sem lógica, ao menos na aparência. Talvez exatamente como as multidões envolvidas nos protestos, o mercado demorou a reagir diante das inconsistências na política econômica.

Tratando-se do público em geral, a dona de casa inclusive, a Copa das Confederações pode ter servido para fornecer uma metáfora ampla do que há de errado nas nossas políticas públicas. Não creio que os economistas, e mesmo as raposas políticas e os marqueteiros, atinaram para o imenso poder de representação que possui o futebol, um retrato tão rico quanto amargo do modo como o País sabe organizar o seu talento, sua riqueza e seu imaginário dentro e fora do campo. É este o assunto do magnífico livro do mestre Roberto Da Matta, cujo título - A bola anda mais do que os homens - bem resume a tese.

A Copa serviu para organizar a cabeça do brasileiro sobre o modo como os cartolas, incluídos os ministros, usam o dinheiro público em projetos de desenvolvimento. Diferentemente da tese de que o futebol é o ópio do povo, a Copa mostrou que o futebol é o teatro por onde enxergamos a nós mesmos, de modo que, ao montar um megaespetáculo, nos arriscamos a revelações inconvenientes.

A igualdade diante das regras, ou a meritocracia e o "fair-play" dentro de campo, é o que uniu esse jogo, na sua complexa simplicidade, às cores nacionais, e assim serviu para disseminar a cidadania.

Com a seleção em campo, cantamos o hino a plenos pulmões, e nunca tão alto como nesta Copa que revelou muito sobre o que se passa fora de campo. Sendo anfitriões, passamos a acompanhar o desenrolar das obras dos estádios e assim o horário nobre passou a explicar em miniatura o modo como as autoridades conduzem grandes programas públicos de desenvolvimento econômico.

O futebol está mesclado com a nacionalidade, a bandeira e o hino, símbolos nacionais que precisam ser honrados, e o mesmo vale para a moeda. O dinheiro é a pátria num papel pintado com nossas cores, é um pedaço de nós. Rasgar dinheiro em estádios de futebol é como queimar a bandeira; uma imagem fácil de entender, e que leva o público para os protestos. Não era por conta dos 20 centavos do ônibus de São Paulo; é claro que era o futebol, o que mais podia ter tanto impacto?

O futebol fez o brasileiro entender que o trem-bala é uma espécie de Itaquerão, e que as prioridades estão totalmente equivocadas para quem se espreme em ônibus ou em filas de hospitais. Pessoas normalmente pacatas vão para a rua sem saber bem por que, animadas, mas os que são vaiados sabem que estão devendo.

Os profissionais do mercado financeiro são cobradores muito mais frios e exigentes, e sobretudo, muito mais violentos, como o célebre personagem de Rubem Fonseca. As ruas mobilizam milhares ou milhões, o "protesto" do mercado financeiro mexe com bilhões. O dinheiro não leva desaforo. O ministro rasga dinheiro através do déficit nas contas públicas e humilha a nossa moeda ao dizer que ganhamos uma guerra ao desvalorizá-la.

A movimentação no mercado de câmbio não está distante da que se passa nas ruas, os gigantes são primos, quem sabe a mesma pessoa, a sombra um do outro.

Em vez Havana?, por Paulo Moreira Leite


O debate sobre a chegada de médicos cubanos é vergonhoso.

Do ponto de vista da saúde pública, temos um quadro conhecido. Faltam médicos em milhares de cidades brasileiras, nenhum doutor formado no país tem interesse em trabalhar nesses lugares pobres, distantes, sem charme algum – nem aqueles que se formam em universidades públicas sentem algum impulso ético de retribuir alguma coisa ao país que lhes deu ensino, formação e futuro de graça. 
Respeitando o direito individual de cada pessoa resolver seu destino, o governo Dilma decidiu procurar médicos estrangeiros. Não poderia haver atitude mais democrática, com respeito às decisões de cada cidadão. 
 
O Ministério da Saúde conseguiu atrair médicos de Portugal, Espanha, Argentina, Uruguai. Mas continua pouco. Então, o governo resolveu fazer o que já havia anunciado: trazer médicos de Cuba. 
 
Como era de prever, a reação já começou.
 
E como eu sempre disse neste espaço, o conservadorismo brasileiro não consegue esconder sua submissão aos compromissos nostálgicos da Guerra Fria, base de um anticomunismo primitivo no plano ideológico e selvagem no plano dos métodos. É uma turma que se formou nesta escola, transmitiu a herança de pai para filho e para netos. Formou jovens despreparados para a realidade do país, embora tenham grande intimidade com Londres e Nova York. 
 
Hoje, eles repetem o passado como se estivessem falando de algo que tem futuro. 
 
Foi em nome desse anticomunismo que o país enfrentou 21 anos de treva da ditadura. E é em nome dele, mais uma vez, que se procura boicotar a chegada dos médicos cubanos com o argumento de que o Brasil estará ajudando a sobrevivência do regime de Fidel Castro. Os jornais, no pré-64, eram boicotados pelas grandes agencias de publicidade norte-americanas caso recusassem a pressão americana favorável à expulsão de Cuba da OEA. Juarez Bahia, que dirigiu o Correio da Manhã, já contou isso. 
 
Vamos combinar uma coisa. Se for para reduzir economia à política, cabe perguntar a quem adora mercadorias baratas da China Comunista: qual o efeito de ampliar o comércio entre os dois países? Por algum critério – político, geopolítico, estético, patético – qual país e qual regime podem criar problemas para o Brasil, no médio, curto ou longo prazo?
 
Sejamos sérios. Não sou nem nunca fui um fã incondicional do regime de Fidel. Já escrevi sobre suas falhas e imperfeições. Mas sei reconhecer que sua vitória marcou uma derrota do império norte-americano e compreendo sua importância como afirmação da soberania na América Latina.
 
Creio que os problemas dos cidadãos cubanos, que são reais, devem ser resolvidos por eles mesmos.
 
Como alguém já lembrou: se for para falar em causas humanitárias para proibir a entrada de médicos cubanos, por que aceitar milhares de bolivianos que hoje tocam pedaços inteiros da mais chique indústria de confecção do país? 
 
Denunciar o governo cubano de terceirizar seus médicos é apenas ridículo, num momento em que uma parcela do empresariado brasileiro quer uma carona na CLT e liberar a terceirização em todos os ramos da economia. Neste aspecto, temos a farsa dentro da farsa. Quem é radicalmente a favor da terceirização dos assalariados brasileiros quer impedir a chegada, em massa, de terceirizados cubanos. Dizem que são escravos e, é claro, vamos ver como são os trabalhadores nas fazendas de seus amigos. 
 
Falar em democracia é um truque velho demais. Não custa lembrar que se fez isso em 64, com apoio dos mesmos jornais que 49 anos depois condenam a chegada dos cubanos, erguendo o argumento absurdo de que eles virão fazer doutrinação revolucionária por aqui. Será que esse povo não lê jornais? 
 
Fidel Castro ainda tinha barbas escuras quando parou de falar em revolução. E seu irmão está fazendo reformas que seriam pura heresia há cinco anos.
 
O problema, nós sabemos, não é este. É material e mental. 
 
Nossos conservadores não acharam um novo marqueteiro para arrumar seu discurso para os dias de hoje. São contra os médicos cubanos, mas oferecem o que? Médicos do Sírio Libanês, do Einstein, do Santa Catarina? 
 
Não. Oferecem a morte sem necessidade, as pragas bíblicas. Por isso não têm propostas alternativas nem sugestões que possam ser discutidas. Nem se preocupam. Ficam irresponsavelmente mudos. É criminoso. Querem deixar tudo como está. Seus médicos seguem ganhando o que podem e cada vez mais. Está bem. Mas por que impedir quem não querem receber nem atender? 
 
Sem alternativa, os pobres e muito pobres serão empurrados para grandes arapucas de saúde. Jamais serão atendidos, nem examinados. Mas deixarão seu pouco e suado dinheiro nos cofres de tratantes sem escrúpulos. 
 
Em seu mundo ideal, tudo permanece igual ao que era antes. Mas não. Vivemos tempos em que os mais pobres e menos protegidos não aceitam sua condição como uma condenação eterna, com a qual devem se conformar em silêncio. Lutam, brigam, participam. E conseguem vitórias, como todas as estatísticas de todos os pesquisadores reconhecem. Os médicos, apenas, não são a maravilha curativa. Mas representam um passo, uma chance para quem não tem nenhuma. Por isso são tão importantes para quem não tem o número daquele doutor com formação internacional no celular.
 
O problema real é que a turma de cima não suporta qualquer melhoria que os debaixo possam conquistar. Receberam o Bolsa Família como se fosse um programa de corrupção dos mais humildes. Anunciaram que as leis trabalhistas eram um entrave ao crescimento econômico e tiveram de engolir a maior recuperação da carteira de trabalho de nossa história. Não precisamos de outros exemplos. 
 
Em 2013, estão recebendo um primeiro projeto de melhoria na saúde pública em anos com a mesma raiva, o mesmo egoísmo. 
 
Temem que o Brasil esteja mudando, para se tornar um país capaz de deixar o atraso maior, insuportável, para trás. O risco é mesmo este: a poeira da história, aquele avanço que, lento, incompleto, com progressos e recuos, deixa o pior cada vez mais distante. 
 
É por essa razão, só por essa, que se tenta impedir a chegada dos médicos cubanos e se tentará impedir qualquer melhoria numa área em que a vida e a morte se encontram o tempo inteiro. 
 
Essa presença será boa para o povo. Como já foi útil em outros momentos do Brasil, quando médicos cubanos foram trazidos com autorização de José Serra, ministro da Saúde do governo de FHC, e ninguém falou que eles iriam preparar uma guerrilha comunista. Graças aos médicos cubanos, a saúde pública da Venezuela tornou-se uma das melhores do continente, informa a Organização Mundial de Saúde. Também foram úteis em Cuba. 
 
Os inimigos dessas iniciativas temem qualquer progresso. Sabem que os médicos cubanos irão para o lugar onde a morte não encontra obstáculo, onde a doença leva quem poderia ser salvo com uma aspirina, um cobertor, um copo de água com açúcar. Por isso incomodam tanto. Só oferecem ameaça a quem nada tem a oferecer aos brasileiros além de seu egoísmo.

Patrocinador do Mal - MARIO VARGAS LLOSA

 

O Estado de S.Paulo - 24/08

A série da TV colombiana Escobar, o Patrocinador do Mal teve muito sucesso no seu país de origem e não há dúvida que terá em todos os lugares onde for exibida. Foi muito bem produzida, escrita e dirigida. Ángel Parra, ator que encarna o narcotraficante, o faz com enorme talento. Contudo, diferentemente do que ocorre com outras grandes séries de TV, como The Wire ou 24, dos EUA, ela é acompanhada com desconforto, um mal-estar difuso provocado pela sensação de que, ao contrário do que relatam, é a descrição mais ou menos fidedigna de um pesadelo que acometeu a Colômbia durante os anos em que viveu sob o império do narcotráfico.

Os 74 episódios aos quais acabei de assistir, embora algumas liberdades tenham sido tomadas com relação à história real e alguns nomes próprios tenham sido mudados, são um testemunho autêntico, fascinante e instrutivo da violenta modernização econômica e social - um verdadeiro terremoto, que sofreu a letárgica sociedade colombiana, que se converteu, por obra do gênio empresarial de Escobar, de uma indústria artesanal, nos anos 70, na capital mundial da produção e do comércio de cocaína.

Infelizmente, a trajetória de Escobar está apenas resumida na série, que se concentra mais na experiência familiar do narcotraficante, sua vida pública e clandestina, seus delírios e seus crimes horrendos. Sua ambição era tão grande quanto sua falta de escrúpulos e os delírios e ataques de ira que o induziam a exercer a crueldade com o refinamento e a frieza de um personagem do Marquês de Sade, contrastavam curiosamente com seu complexo de Édipo mal resolvido que o transformava num cordeiro diante da rígida matriarca que foi sua mãe e sua condição de marido modelo e pai muito afetuoso.

Quando lhe apetecia uma "virgenzinha", seus sequazes procuravam uma e depois era assassinada para apagar as pistas. Sempre se considerou um "homem de esquerda" e quando oferecia casas de presente para os pobres construía também zoológicos e proporcionava grandes espetáculos esportivos, como quando mandava explodir carros-bomba que deixavam centenas de inocentes em pedaços.

Ele estava convencido de estar lutando por justiça e direitos humanos. Como criou milhares de empregos - lícitos e ilícitos -, era pródigo e perdulário e personificou a ideia de que uma pessoa pode enriquecer da noite para o dia usando uma arma. Foi ídolo nos bairros marginais de Medellín e, por isso, quando morreu, milhares de pobres choraram por ele, chamando-o de santo, um segundo Jesus Cristo. Ele, como sua família e seu exército de rufiões, era católico praticante e devoto de Santo Niño de Atocha.

Sua fortuna foi gigantesca, embora ninguém tenha conseguido calcular o valor com precisão e não tenha sido exagero quando, em determinado momento, se afirmou que ele era o homem mais rico do mundo. O personagem mais poderoso da Colômbia podia transgredir todas as leis, comprar políticos, militares, funcionários, juízes, torturar, sequestrar e assassinar todos aqueles (e suas famílias) que ousavam se opor a ele.

O notável é que, diante da alternativa em que Pablo Escobar transformou a vida dos colombianos - "prata ou chumbo" -, havia pessoas, como o jornalista Guillermo Cano, dono e diretor do jornal El Espectador, sua heroica família e alguns juízes, militares e políticos que não se deixaram comprar nem intimidar, e preferiram morrer. Foi o caso de Luis Carlos Galán e do ministro Rodrigo Lara Bonilla.

O que dá calafrios ao ver essa série é a impressão que fica de que, se o poder e afortuna não o tivessem empurrado, nos anos finais da sua vida, para excessos patológicos e a se desentender com os próprios sócios, que ele extorquia e mandava assassinar, e tivesse se resignado a um papel menos histriônico e exibicionista, Escobar poderia ter sido presidente da Colômbia ou talvez dono do país.

O que o arruinou foi a soberba, o fato de se acreditar o todo-poderoso, criar tantos inimigos no seu próprio meio e provocar tanto medo e terror com os assassinatos coletivos de carros-bomba, que mandava explodir nas cidades nas horas de pico para que o Estado se submetesse a suas ordens, que seus próprios cúmplices se juntaram contra ele e foram o principal fator de seu fim.

Se um romancista inserisse em sua obra alguns dos episódios protagonizados por Pablo Escobar, a história fracassaria estrondosamente, considerada inverossímil. Talvez o mais delirante e jocoso seja o episódio da sua "entrega" ao governo colombiano, depois de ter dado a satisfação para ele de assinar decretos garantindo que nenhum colombiano jamais seria extraditado para os EUA - a Justiça americana era o pesadelo dos narcotraficantes - e construir para ele um cárcere privado, "La Catedral", de acordo com suas exigências e necessidades.

Ou seja: mesas de bilhar, piscina, discoteca, um chefe de cozinha de prestígio, equipamentos sofisticados de rádio e televisão, o direito de escolher e vetar a guarda encarregada de vigiar o exterior da prisão. Escobar instalou-se na Catedral com suas armas, seus sicários e continuou dirigindo, dali, seu negócio transnacional. Quando queria, ia para Medellín para se divertir e, outras vezes, organizava orgias no suposto cárcere, com músicos e prostitutas que eram trazidos por seus capangas.

Na mesma prisão, permitiram o assassinato de dois dos seus destacados sócios no Cartel de Medellín por não terem deixado que os extorquissem. Como o escândalo foi enorme e a opinião pública reagiu com indignação, o governo tentou transferi-lo para uma prisão de verdade. Então, Escobar e seus pistoleiros, alertados pelos próprios guardas, que estavam em sua folha de pagamento, fugiram. Ainda conseguiu desencadear uma série de assassinatos, mas ele já estava mentalmente perturbado. Os Pepes (Perseguidos por Pablo Escobar) haviam começado a agir.

Quem eram os Pepes? Uma associação de rufiões, vários deles ex-sócios de Escobar no tráfico de cocaína, o Cartel de Cali, que sempre foi adversário do de Medellín, os guerrilheiros da ultradireita (comitês de autodefesa) de Antioquia e outros inimigos do universo do banditismo que Escobar fora criando com seus caprichos e prepotências ao longo de sua carreira. Eles compreenderam que a visibilidade alcançada por esse personagem punha em risco todo o narcotráfico.

Assassinaram seus colaboradores, prepararam emboscadas, converteram-se em informantes das autoridades. Em menos de um ano, o império de Pablo Escobar desintegrou-se. Seu final não podia ser mais patético: acompanhado por um único guarda-costas - todos os outros estavam mortos, presos ou haviam passado para o lado do inimigo - escondido em uma casinha muito modesta e delirando com seu projeto de refugiar-se em algum grupo guerrilheiro nas montanhas, por fim, foi caçado por um comando policial e militar que o abateu a tiros.

A morte de Escobar, esse pioneiro dos tempos heroicos, não acabou com a indústria do narcotráfico. Nos nossos dias, ela se tornou muito mais moderna, sofisticada e invisível do que naqueles tempos. A Colômbia já não detém a hegemonia de então. O tráfico se descentralizou e campeia também no México, na América Central, Venezuela, Brasil e nos países antes exclusivamente produtores da pasta básica, como Peru, Bolívia e Equador.

Hoje, eles competem na área do refino e na comercialização e, como na Colômbia, têm guerrilheiros e exércitos privados a seu serviço. A fonte principal da corrupção, a grande ameaça para o processo de democratização política e modernização econômica vivido pela América Latina, continua sendo e será cada vez mais o narcotráfico.

Até que, por fim, se abra totalmente o caminho para a ideia de que a repressão à droga serve apenas para criar obras destrutivas como a construída por Escobar e a delinquência associada a ela desaparecerá somente quando o seu consumo for legalizado e as enormes somas atualmente investidas em combatê-la forem gastas em campanhas de reabilitação e prevenção. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO E ANNA CAPOVILLA

Capital afetivo - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 25/08

A esta altura dos acontecimentos, devo admitir que ainda não achei resposta para a pergunta com que o Caetano foi ao ponto: existirmos, a que será que se destina? Seremos, como dizia no fim o Cazuza, cobaias de Deus? Se você me permite a filosofada, desconfio que o sentido da vida se resume ao inconsequente prosseguimento da espécie, nessa absurda correia transportadora em cujo termo nos espera a queda no vazio. Resta saber o que faremos enquanto estamos por aqui. Se aceita sugestão, aqui vai esta: o melhor investimento é nos afetos.

Nada impede que a gente faça amigos até o último dia, mesmo como esforço de reposição, e espero que seja assim comigo. Alguns anos atrás, para comemorar uma idade redonda, dei uma festança, e me lembro da alegria que saboreei quando, ao descer uns degraus rumo ao espaço onde estava o povaréu, me bateu essa constatação: o que costurava aquelas 200 pessoas - muitas das quais nem se conheciam -, numa inédita e irrepetível configuração, era o afeto que me ligava a cada uma delas.

E não se tratava, benza Deus, de passageiros apenas do vagão de 1945, aquele em que desembarquei no mundo; ao contrário, estacionara ali uma composição de variadas gerações, dos 80 anos aos menos de 20. Foi gratificante me dar conta de que venho resistindo bem à tentação, reforçada pelo envelhecimento, de me refugiar nostalgicamente no vagão de origem. Bom saber que posso transitar por todos os demais até que chegue à estação final.

Lá estavam, claro, vindos de diversas partes, amores meus também chegados em 1945 e imediações; os "amigos fundamentais" a quem dediquei um livro e que me empenho em cultivar. Pois não é pouca coisa uma amizade capaz de atravessar, nem digo décadas, mas tantas solicitações à dispersão. É fácil ser amigo enquanto impera o socialismo da juventude, essa companheiragem - os mesmos sonhos, os mesmos gostos, o mesmo dinheiro curto - que nos mantém mancomunados até por volta dos 30, 30 e poucos anos, quando uma diáspora nos espalha por destinos nem sempre coincidentes e não raro inconciliáveis. É duro admitir, mas há em nossos corações (ou será no fígado?) um quarto de despejo para descarte de afetos vencidos.

Cada safra de amizades tem sua marca, mas só as mais antigas ostentam o privilégio de haverem compartilhado descobertas primordiais. Só na extrema juventude você tem direito de anunciar a seus parceiros, sem risco de ridículo, que descobriu um tal de Dostoievski, um tal de Brahms, um tal de Cézanne. Ou mesmo um tal de... não, não vou dizer o nome do romancista em questão. Mas entrego a cena cômica.

Ali pelos nossos 20 anos, um de meus comparsas literários, cujo nome também devo omitir, me apareceu um dia, exultante, com um livro nas mãos. Eu tinha que ler aquilo, tinha!, urgia ele, enfático. Bom assim?, perguntei, descrente de que por trás daquele título e daquela capa, ambos medonhos, pudesse haver o que se aproveitasse. Não - concedeu ele, antes de proferir essa maravilha: "É ruim, mas importante!". Pra quê! Estava criada em nossa roda, para todo o sempre, a categoria do ruim-mas-importante.

Mas convém ir devagar nos julgamentos, pessoais e literários inclusive. Era menino quando minha mãe me aplicou o Coração, do italiano Edmundo De Amicis, centenária coletânea de histórias que li e reli apaixonadamente, mas que no final da adolescência, sentindo-me não só homem feito como senhor de insubornável senso crítico, condenei à estante da subliteratura lacrimogênea. Já me aproximava dos 30 anos quando reencontrei o mesmo exemplar de Coração, que me pus a folhear, enquanto contava à amiga que me acompanhava: "Imagina que eu lia isso e chorava...". Abri o livro ao acaso e comecei a ler, em tom de mofa, a história do pequeno vigia lombardo, até que a voz engasgou e os olhos, como antigamente, boiaram em lágrimas.

(Epa, eu falava de amizade, enveredei pelas letras, cheguei às lágrimas... Espero que você perdoe o desconchavo. Amigo não é pra essas coisas?)

O que você vai ser quando crescer? - MARTHA MEDEIROS


ZERO HORA - 25/08


Numa sociedade competitiva como a de hoje, não é de estranhar que o fator mais importante da vida seja o trabalho. Ele consome nosso tempo e nossas preocupações: temos que ganhar dinheiro, temos que ser os melhores, temos que superar a concorrência e só então... Só então o quê? Morrer?

Crianças mal atingem os cinco anos e já começam a ser sabatinadas sobre o futuro: “O que você vai ser quando crescer?”. E as coitadinhas entram no jogo. Em vez de responderem que pretendem ser surfistas, caroneiras, participantes de um coro ou defensoras da natureza, respondem com a primeira profissão que lhes vêm à cabeça: veterinário, professor, bombeiro. Na verdade, elas não têm a menor ideia do que querem ser – nem os vestibulandos têm – mas já intuem que sua identidade estará atrelada ao que fizerem para se sustentar.

Tanto isso é verdade que os anjinhos crescem, estudam, começam a trabalhar e um dia estão numa festa e são apresentados a alguém. Trocam um aperto de mãos e a primeira pergunta entre os dois desconhecidos será: “O que você faz?”.

E não se ouvirá como resposta “eu levo meus filhos ao estádio, eu participo de rallys aos domingos, eu sou campeão em palavras-cruzadas, eu saio com meu cachorro todo final de tarde, eu vou ao cinema às quintas-feiras, eu namoro a mulher mais incrível do mundo, eu corro maratonas”.

Você responderá que é professor, veterinário, bombeiro. Ou vão achar que você não tem uma vida.

Mas você também. Só que ela ocupa um lugar muito menor do que deveria na sua lista de prioridades. Você passa um terço do dia trabalhando, e outro terço pensando na reunião de amanhã cedo, nas tarefas que ainda não foram concluídas, no cliente que está ameaçando deixar a empresa, no funcionário que não está correspondendo. No terceiro terço você dorme. Mal.

Quem está viciado nesse esquema pode encontrar dificuldade em relaxar. Mas para quem está entrando agora no mercado de trabalho, vale adotar desde cedo uma postura mais equilibrada entre vida pessoal e profissional, começando por repensar essa questão da identidade: você não é o que você faz para ganhar dinheiro, você é o que você faz para ser feliz. As horas de lazer também são produtivas, uma vez que elas abastecem nossa imaginação, sonhos, ideias, reflexões, e sem isso, aí é que não se cria identidade alguma, viramos apenas um número a mais nas estatísticas de mão-de-obra.

Não sei o que o Brasil pretende ser quando crescer, mas tomara que ele cresça com pessoas que, ao chegarem perto da morte, não tenham tantos arrependimentos pelo que deixaram de fazer quando ainda tinham tempo para fazê-las.

Luz engarrafada' sai de Minas e conquista pelo menos 15 países


Invenção de um morador de Uberaba ainda aguarda investidores para ganhar mercado

25 de agosto de 2013 | 2h 09

Rose Dutra / UBERABA - Especial para O Estado de S.Paulo
Morador de Uberaba (MG) desde 1980, o mecânico natural de Itajaí (SC), Alfredo Moser, 61 anos, inventou em 2002 a "luz engarrafada". O produto, criado para economizar energia e preservar o planeta, já beneficia milhares de pessoas pelo mundo. A "lâmpada de Moser" está em uso em pelo menos 15 países, entre eles Filipinas, Bangladesh, Índia, México, Colômbia.
Mesmo com todo esse sucesso, Moser, que concluiu apenas o ensino fundamental, permanece vivendo com extrema simplicidade ao lado da esposa Carmelinda, com quem é casado há 35 anos, e do filho Samuel, de 27 anos. Sua consciência ecológica e sua postura solidária impressionam.
"Nunca pensei em ficar rico, mas sim em ajudar a população, pois a energia elétrica é muito cara, e em contribuir para a preservação do planeta," diz. Dependendo da força do calor, segundo mediu um engenheiro da Cemig, a "lâmpada de Moser" é de 40 a 60 watts.
Além de usar sua lâmpada em casa, Moser já a instalou em casas de vizinhos e até em um supermercado do bairro. Ademar Bernardes Júnior, dono do estabelecimento, quer ampliar o uso da iluminação, que atualmente é restrita ao depósito, também para outros ambientes do supermercado.
"Eu gostaria que as autoridades políticas apoiassem a iniciativa que vem ao encontro do conceito de sustentabilidade", diz Bernardes Júnior.
A "lâmpada de Moser" já é usada em áreas mais pobres em estufa para a produção de alimentos. Há casos em que a economia com energia, de aproximadamente 30%, permitiu que a família carente comprasse o enxoval do bebê. E ele revela que já consegue colocar sua lâmpada até em casas com laje, utilizando baldes de plástico.
No Brasil, além de em Uberaba, sua lâmpada também é usada em Santa Catarina, instalada por um primo; em Osasco (SP), no Núcleo de Educação Ambiental, no Parque Chico Mendes; em Brasília e no Piauí.
Investidor. O sonho de Moser é que uma empresa se interesse pela sua invenção e possa investir em tecnologia para que ela tenha um formato mais decorativo, ilumine mais e também à noite. É que a lâmpada inventada por ele, usando garrafa pet com água e duas tampinhas de água sanitária, instalada no telhado com massa plástica, depende da luz do sol. "Eu já sei como fazer ela clarear à noite, mas preciso de apoio financeiro."
Moser já procurou políticos das esferas municipal, estadual e federal, mas ainda não conseguiu apoio para registrar o seu invento nos órgãos competentes. "O governo deveria ter um órgão de acesso fácil pelos inventores para patentear seus produtos, até porque cada invento movimenta diversos segmentos da economia", observa. Moser mostra uma lista de vários locais que já o instruíram a procurar, mas ele não possui recursos financeiros para cobrir os gastos com viagens. "Se gasta muito dinheiro para ir ao espaço, por exemplo, e coisas simples assim dificilmente têm respaldo", lamenta.
Nas Filipinas, o diretor executivo da Fundação MyShelter, Angelo Illac Diaz, segundo ele, conseguiu apoio e começou a fazer as lâmpadas em 2011, que já iluminam 140 mil casas.
"Isso é o que me deixa emocionado. Ver a alegria de pessoas que vivem na pobreza terem luz em casa sem custo nenhum", enfatiza. A luz engarrafada representa uma revolução, pois é limpa, eficiente e sem custo. Ele se emociona ao dizer que deixará um legado importante para a humanidade, pois esta será a luz do futuro, já que daqui a milhões de anos a água vai acabar e a "lâmpada de Moser" ilumina com energia solar. Seu projeto ganhou projeção nacional com a aprovação de engenheiros de centrais elétricas.
Tudo começou quando Moser trabalhava em Brasília, na década de 70. Como as quedas de aviões eram constantes, ele se preocupou em criar formas de sinalizar a ocorrência de acidentes. O chefe dele disse que se fosse necessário bastaria usar uma garrafa de vidro com água que refletiria o sol e pegaria fogo no capim. A fumaça sinalizaria e ele guardou a ideia sempre pensando em aperfeiçoá-la, mas sem o uso de vidro. Por isso optou pela garrafa pet.
Filho de pai de origem italiana e mãe de origem alemã, Moser foi trabalhador braçal para ajudar os pais a arcar com as despesas para manter os seus 11 irmãos na escola. A maior alegria de Moser é que, antes de seus pais morrerem, estavam orgulhosos da invenção do filho.