quinta-feira, 18 de abril de 2024

O apagamento da memória em alta velocidade, Vicente Vilardaga, FSP

 SÃO PAULO

Disse bem o antropólogo Claude Lévi-Strauss, referindo-se à São Paulo no seu livro "Tristes Trópicos", quando apontou que as cidades do Novo Mundo iam do viço à decrepitude sem passar pela idade avançada. Isso se percebe perfeitamente na arquitetura e no urbanismo. Não há limites para a destruição das antigas construções da cidade que podem ter representado algum momento de glória ou deleite e que agora só são estorvos para a ganância imobiliária. A história só está aí para ser demolida. Diariamente, nosso passado é engolido por um novo prédio com apartamentos de 30 metros quadrados.

Não é por acaso que casas e edifícios antigos viraram objeto de culto. São tão poucos e quase sempre ameaçados que só nos resta admirá-los cegamente e exigir a sua proteção. Mesmo sem grande importância arquitetônica são manifestações de arte. São glorificados pela sua resistência, pelo mero fato de se terem mantido em pé apesar da selvageria urbanística que se vê desde sempre na cidade. Ainda que não tenham vicejado no seu tempo áureo merecem um respeito protocolar.

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Quadra com 55 casarões com risco de desabamento na rua Helvétia, no centro de São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress

O problema é que quem cultua as velhas construções está condenado a se frustrar. Têm-se a sensação de que tudo que não é tombado pode ser demolido a qualquer momento. Nossa memória afetiva dos lugares da infância dá lugar a uma sensação de vazio. Vamos perdendo as referências e nos deparamos com novidades que não tem a mínima graça. O que fica é a desolação.

Quem olha os novos prédios erguidos diariamente em São Paulo pode pensar que trata-se de sinais de prosperidade, da chegada da idade avançada. Mera ilusão. Com sua padronização irritante, eles só revelam uma vontade de apagamento, de tornar a cidade mais ridiculamente moderna e menos charmosa e acolhedora.

Vista de predios novos no bairro Barra Funda ao lado do viaduto Antártica (ao fundo, Terminal Barra Funda) - Eduardo Knapp/Folhapress

Assiste-se com uma passividade contemplativa a ilusão da modernidade. O tempo de vida das construções é e será curto e as novidades na paisagem se misturam com as ruínas cada vez mais abundantes. O deus do mercado deixa as velhas construções se arruinarem para ficar mais fácil ocupar o terreno com um conjunto residencial ou comercial pasteurizado.

A cidade que Lévi-Strauss viu nos anos 1930 certamente não existe mais. Resta um ou outro prédio no Centro que resistiu milagrosamente. Mas não é necessário ir tão longe, até os tempos em que o antropólogo francês andou por essas bandas, para perceber a velocidade da destruição. Fiquemos nos bairros. As edificações dos anos 1970 e 1980, que não tem qualquer proteção dos departamentos de defesa do patrimônio histórico, estão sumindo sem qualquer controle.

A geração que tem 60 anos hoje assiste aturdida o desaparecimento de suas referências urbanas. Basta trafegar por avenidas como a Santo Amaro, na zona Sul, ou a Rebouças na zona Oeste para ver o trator imobiliário esmagando tudo que vê pela frente. Na Vila Mariana e na Barra Funda é a mesma coisa, sem falar na Vila Madalena, onde a Mercearia São Pedro virou poeira. Do dia para a noite, no lugar de casas e prédios do passado instala-se um canteiros de obras. O Brooklin está se verticalizando numa velocidade espantosa.

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Bar Mercearia, na Vila Madalena, é demolido em São Paulo; terreno onde ficava o bar há mais de 50 anos foi vendido para construtora - Marina Monzillo

Há uma corrida insana pela eliminação das casas, dos pequenos sobrados, das vilas. A palavra de ordem é verticalizar, colocar todo mundo em prédios altos, amparados em uma lei de zoneamento frouxa que só serve para dar combustível para a demolição. No espaço de uma vila com dez casas cabe, afinal, um edifício com 60 ou 70 apartamentos. Dane-se a qualidade de vida. Viva a modernização escandalosa que suga o ar provinciano dos bairros e os torna mais congestionados e caros.

A indústria imobiliária é irrefreável e nos afasta do esplendor. Somem as paisagens e mudam-se os vizinhos. Sorrateira, a máquina de erguer edifícios avança sobre o pequeno comércio dos bairros, as velhas escolas, a casa antiga onde viveu sua família, os bares, o prédio baixo sem estacionamento. O que fica no lugar é um paredão de pedra com apartamentos frequentemente minúsculos. Sem dúvida perdemos o viço e nos acomodamos na decrepitude da destruição da memória.

Ruy Castro - O rascunho da bossa nova, FSP

 Era um garoto de 21 anos, de férias com seus parentes em Diamantina (MG), em 1956. Gostava de violão e ficou sabendo de um músico de passagem pela cidade: um rapaz baiano, João Gilberto, hospedado na casa da irmã Dadainha. Nosso herói, chamado Pacifico, foi procurá-lo. Bateu palmas no portão e o próprio João Gilberto atendeu. Pacifico se apresentou, falaram de violão e João Gilberto convidou-o a entrar.

João Gilberto contou que era músico profissional no Rio e trabalhara na Rádio Tupi. Estava dando um tempo na casa da irmã, concentrado em algumas ideias sobre um novo ritmo no violão. E mostrou a Pacifico uma batida sincopada, diferente, cheia de divisões difíceis. Pacifico gostou. Falaram-se mais algumas vezes e Pacifico voltou para Belo Horizonte, onde morava com os pais. Dois anos depois, em 1958, escutando rádio, reconheceu a voz e a batida do violão. Era "Chega de Saudade", com João Gilberto. E aquele ritmo se chamava bossa nova.

Pacifico Mascarenhas morreu na semana passada (9), aos 89 anos, em Belo Horizonte. Gostava da comparação que fiz em meu livro "Chega de Saudade", de que seu encontro com João Gilberto lembrava o camponês de Stendhal, que, ao arar a terra e ouvir os canhões ao longe, não sabia que estava em meio à guerra de Waterloo. Pacifico, sem saber, ouvira o primeiro rascunho da bossa nova.

O próprio Pacifico teve uma bela carreira musical em Minas Gerais, com reflexos nacionais. É autor de canções como "Demolição", "Minha Ex-Namorada" e "Começou de Brincadeira", que quase toda a bossa nova gravou, e criador do conjunto Sambacana, que revelou Milton Nascimento.

Pacifico era também colecionador de carros. Ao me mostrar suas raridades, perguntei bobamente se ele tinha o histórico Ford Modelo T, de 1908. Pacifico nem piscou: "Devo ter uns dois ou três, sei lá. Mas difícil mesmo é este Lincoln 1931, que foi do Getulio".

O músico Pacífico Mascarenhas na década de 1960
Pacifico Mascarenhas na década de 1960 - Reprodução

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Uma forma de financiar o jornalismo que resvala em questões éticas, Jornal da USP

 Assunto: financiamento do jornalismo. Algo inédito está acontecendo nesse sentido por meio da Hunterbrook Media, uma iniciativa que Carlos Eduardo Lins da Silva considera original e interessante, embora um tanto problemática para os princípios tradicionais do jornalismo, protagonizada pela Hunterbrook, um fundo de hedge que se dedica a comprar e vender ações e que criou aquela subsidiária cujo objetivo é se dedicar integralmente ao jornalismo investigativo, principalmente nas áreas financeira e econômica. A empresa vai oferecer seu conteúdo de graça e não vai vender anúncios, “mas, antes de cada reportagem ser publicada, a Hunterbrook Media vai dar acesso a essa reportagem à Hunterbrook, que é o fundo de hedge; a Hunterbrook vai fazer os seus negócios com base naquelas informações que foram coletadas pelos jornalistas”. A ideia é de, com o dinheiro obtido, financiar uma Redação.

Seja como for, é uma iniciativa que foge aos padrões do jornalismo, na opinião do colunista, que, na sequência de seu comentário, faz uma análise da primeira matéria publicada, a qual trata de uma empresa que lida com hipotecas nos EUA e que teria rendido à Hunterbrook US$ 100 milhões, valor resultante dos negócios realizados a partir dessa reportagem, uma manobra que não escapuliu a algumas críticas. A empresa já está prometendo para muito breve uma grande matéria sobre um conglomerado de energia que estaria dando suporte a uma junta militar.

“Mas é evidente que se eles fizerem isso e isso tiver uma repercussão grande, for tudo comprovado, vai ser bom jornalismo”, observa o colunista. “O fato de eles antes passarem essas informações para os seus patrões, para que eles ganhem bastante dinheiro, é a questão que pode ser discutida, se isso é ético ou não é ético. Eles dizem que esse dinheiro vai servir para ampliar, para expandir as atividades da Hunterbrook Media e que, com isso, vão poder ter uma grande Redação e fazer mais e mais reportagens que beneficiarão o público e a sociedade.” Apesar de toda a sensação de desconforto que esse tipo de iniciativa possa causar, Lins da Silva acredita ser uma forma de financiar o jornalismo, “que está realmente acabando na maior parte do mundo”.


Horizontes do Jornalismo
A coluna Horizontes do Jornalismo, com o professor Carlos Eduardo Lins da Silva, vai ao ar quinzenalmente, segunda-feira às 8h30, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção  da Rádio USP,  Jornal da USP e TV USP.